quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Minha amiga Leila, que acompanha, de Petrópolis, as "literatices" que apronto aqui do Rio, me deu uma sugestão há uns dias atrás. Como estamos em plena comemoração pelos 100 anos da morte de Machado de Assis, e "pipocam" cursos, seminários e palestras pela cidade sobre este grande romancista, ela me "soprou" lá do alto da serra:
- Sylvia, porque você não sugere ao seu grupo literário o tema "Amor e ciúme", tão recorrente na obra de Machado?
Pois fiz exatamente isto. O grupo, não só aceitou, como acrescentou uma palavra ao tema, que passou a ser: "Amor, ciúme e traição".
Aí vai o texto que escrevi:

EU NÃO SOU CAPITU!

Sylvia Regina Marin

Marta se arruma com esmero. Põe seu melhor vestido – um branco de bolinhas vermelhas que o marido lhe deu de presente faz muito tempo. Está fora de moda, ela sabe, mas quem se importa? Batom nos lábios, uma leve sombra azul nos olhos, sandálias de salto alto – e pronto! Não falta mais nada.
Alvinho está vestido há horas. Nervoso, chama pela mãe:
- Vamos logo, mainha. Tenho que chegar cedo ao teatro.
Marta nunca foi ao teatro. Está emocionada. Quando ela poderia imaginar que seu menino seria o ator principal de uma peça? Tudo invenção de D. Carmem, a nova professora do grupo escolar, que cismou de fazer uma comemoração pelos cem anos da morte de Machado de Assis. Diz ela que esse tal Machado foi um grande escritor. Ah! E Marta lá tem tempo para ler alguma coisa? O máximo que faz é passar os olhos pelo boletim de Alvinho.
Agora, sai toda orgulhosa de casa. Os vizinhos chegam à janela para bisbilhotar. Não estão acostumados a vê-la assim, nesses “trinques”. Com o nariz empinado, ela não economiza pose. De mãos dadas com o filho, desce o morro – ainda tem um bom chão para andar até a escola. O teatro foi improvisado em um velho auditório, lavado e pintado pelos próprios alunos.
Alvinho faz o maior mistério. Não quis, de jeito nenhum, contar o enredo da peça para a mãe. Marta só sabe que o nome de seu personagem é Bentinho. Nada mais ele deixou escapar. Juntos, atravessam a avenida principal – cúmplices no afeto, felizes pela expectativa do que está para acontecer.
Chegam, finalmente, ao seu destino. O palco já está iluminado e as pessoas se acomodam em suas poltronas. Marta consegue um lugar na primeira fila. Aguarda ansiosa. Sente a vibração que agita os bastidores e torce pelo filho, que tantas alegrias lhe dá. Mais alguns instantes, e ouve-se o som de uma campainha, que toca três vezes. Silêncio agora. A cortina se abre.
Marta acompanha tudo inquieta, palavra por palavra, cena após cena, sem pestanejar. O coração descompassa.
- Como é que Machado ficou sabendo dessa história? – pergunta-se atônita.
Um filme passa por sua cabeça. Relembra a vinda da família para o Rio de Janeiro, onde ninguém os conhecia; a dúvida que corroeu seu marido ao ver Alvinho na maternidade, tão branco que nem parecia seu filho; o sofrimento que viu, durante anos, nos olhos de seu parceiro. Agora, que estava tudo tão bem, as mentes aquietadas, tinha que aparecer esse Machado para reacender a fogueira que já tinha se extinguido em seu peito?
A peça termina. Marta chora copiosamente. Do palco, Alvinho ouve os soluços da mãe e estufa o peito:
- Puxa, mainha gostou mesmo!
Marta não lembra se aplaudiu. Só recorda de ter ficado muito tempo ali sentada, ouvindo o burburinho em volta. De repente, Alvinho estava de pé à sua frente, sorrindo.
- Como você cresceu, meu menino! – não tinha notado como ele estava alto.
Abraçaram-se.
Voltaram para casa calados – cada um com suas próprias emoções a serem elaboradas.
Na subida do morro, encontraram João, o dono da venda, que quis fazer graça, coitado, e disse para Marta:
- Comadre, você está muito bonita hoje. Onde foi a festa? Sente aqui um pouquinho antes de ir para casa. Se chegar assim, com esses olhinhos de ressaca, o compadre vai desconfiar...
Aquilo foi demais para Marta. E, para espanto de João e de Alvinho, ela explodiu em lágrimas novamente e gritou:
- Eu não sou Capitu! Eu não sou Capitu!

Outubro de 2008

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A PRIMEIRA VEZ DE NATALIE


Sylvia Regina Marin

O sol já ia se pôr. Manoel chegaria em poucos instantes.
- Parece que foi ontem mesmo que meu bebê nasceu... – pensava Aline, nervosa, a andar pela sala de um lado para o outro. Não conseguia imaginar que sua pequena Natalie, ainda tão despreparada para o mundo, estaria, dali a alguns instantes... não, não, era demais para sua cabeça.
Duvidava de que Manoel fosse a pessoa certa para acompanhá-la nessa aventura. Mas, que bobagem, é claro que ela podia confiar nele - era experiente e maduro. A filha estaria bem protegida.
Natalie sorria, vendo a ansiedade da mãe. Para uma mulher moderna, antenada, como Aline, era um pouco over essa atitude grotesca, quase histérica, eu diria “careta” que tomava conta de sua pessoa. Ela tinha noção do quanto estava sendo ridícula, mas não conseguia se controlar.
Pegou um agasalho.
- Pode esfriar na volta!
Apertou Natalie contra o peito e, movida pelo extremo amor que sentia, balbuciou as mesmas recomendações que havia feito durante o dia todo. Não era demais repetir.
Manoel chegou. Natalie o olhou com ternura e abriu um sorriso encantador, que quase o fez babar de emoção. Troca cúmplice de olhares, um beijo tímido e casto – tudo isso, em vez de melhorar o estado de espírito de Aline, só fez aumentar sua neurose. Suava em bicas. E não era menopausa. Ainda era muito jovem para essas coisas. Os nervos estavam à flor da pele.
Mas a hora tinha chegado, a decisão estava tomada e não havia retorno. Dirigiram-se para a porta do apartamento. Aline ainda ia parar para ajeitar a roupa da filha, quando Manoel declarou categórico:
- Vamos!
Deste minuto em diante, Aline passou a não ser mais dona da situação. Perdeu completamente o controle e se deixou levar pelos desígnios da sorte. Afinal, não dizem que criamos os filhos para o mundo?
Saíram a pé por Copacabana. E foi assim que aconteceu. Com Manoel de um lado e Aline do outro, Natalie chegou à sua primeira reunião literária na casa de Myriam. Todo o nervosismo de Aline tinha sido pura perda de tempo. Do alto de seus dois meses de vida, Natalie se comportou muito bem, mamou bastante, foi “paparicada” por todos e ainda recebeu o título de princesa.
Nós amamos a presença de Natalie. E tivemos o cuidado, cada um de nós, de plantar em seu coração a sementinha do amor pela poesia e pelas belas palavras.
- Que elas floresçam, Natalie! Queira sua mãe ou não, você já foi contaminada!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Bala Perdida

Sylvia Regina Marin

Segunda-feira de manhã. O trem ia lotado. Já era a terceira condução de Sueli naquele dia, e ainda faltava saltar na Central, pegar o metrô até Botafogo e depois o ônibus para o Humaitá. Fazia esse mesmo trajeto toda segunda-feira. Durante a semana, dormia na casa da patroa. Era mais cômodo. Rezou tanto para seu anjo-da-guarda que conseguiu sentar. Ficou espremida entre uma mulher obesa e um homem de pernas abertas, mas tudo bem.
- Obrigada, meu anjinho – rezou ela.
O balanço do trem a fez pegar no sono. De início, os olhos abriam e fechavam – ela fazia força para não dormir. Tinha medo que lhe roubassem a bolsa. Mas aquela sensação gostosa foi mais forte que sua vontade, e Sueli acabou relaxando. Sonhou que ainda era criança, que ainda vivia naquele curto período de inocência entre os primeiros passos e as primeiras frustrações. Sua mãe a chamava:
- Eulina! Eulina!
Ah sim, esqueci de dizer que Sueli era o nome com o qual Eulina se apresentava às pessoas. Ela detestava seu nome. Aliás, ela odiava tudo que dizia respeito a si própria – sua origem humilde, a pele manchada pelo vitiligo, o cabelo seco e quebradiço, o padrasto que a maltratava. Dizia que tinha vindo ao mundo para sofrer. Pobre Sueli – tão carente e infeliz!
Mas o sonho era bom. Ela corria às gargalhadas enquanto a mãe tentava pegá-la. O jardim estava florido, o parque cheio de meninos e meninas que tinham acabado de sair da escola – e Sueli, alegre, flutuava e se escondia atrás de cada arbusto do caminho. Até que jogaram uma pedra, com força, em sua perna esquerda. Que dor danada! Gritos. Empurrões. Acordou assustada.
- Não se tem mais sossego nesta terra – bradiu o homem a seu lado.
Foi preciso que transcorressem uns minutos para que Sueli entendesse o que estava acontecendo. O buraco na janela do trem e a bala encravada no chão, bem perto dos seus pés, davam uma idéia do que tinha ocorrido.
- Moça, a senhora nasceu de novo – falou a mulher obesa.
- Eu estava dormindo – respondeu Sueli. Imagine só, levei uma pedrada no sonho. Podia jurar que era de verdade. Está até doendo... Foi bem aqui.
Levantou a saia com discrição para massagear a pele dolorida e lá estava ela, a marca – não da pedra – mas da bala que a tinha atingido. Começou a chorar. O pedaço de músculo duro e avermelhado era mais uma prova daquilo que ela já sabia – era a última das mulheres.
Exagero, sem dúvida, mas foi, assim, fungando, que ela chegou ao trabalho. A patroa estava meio nervosa:
- Atrasada de novo, Sueli... O que houve? Mais uma tragédia na vizinhança?
- Foi comigo mesma, patroa. Veja com seus próprios olhos.
- Bem, você sobreviveu, não é? Deu queixa na polícia?
- Pra que, madame? O que a senhora acha que os policiais vão fazer? É bem capaz que eles me expulsem da delegacia. Pobre é que nem barata. Se bobear, eles pisam na gente. Depois, podem pedir meus documentos, e aí vai todo mundo saber meu nome.
- Ora, Sueli. Que bobagem! Ninguém vai ligar para o seu nome e, mesmo que não façam nada, seu caso vai ser registrado e será parte de uma estatística. Isso é muito importante!
A moça ficou animada. Fosse lá o que fosse essa tal de estatística, quem sabe ela ia ficar famosa? A patroa não disse que era importante? Ela não podia perder a oportunidade. Não é todo dia que aparece uma coisa assim na vidinha sem graça de pessoas como ela.
À tarde, com os afazeres domésticos prontos, arrumou-se o melhor que pôde e foi até a delegacia mais próxima. Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali sentada, à espera de ser atendida. Quando a patroa chegou em casa, do trabalho, Sueli ainda não tinha voltado.
As horas passavam e Sueli... nada. A patroa se inquietou. Mas que demora! Já estava arrependida de ter incentivado a empregada a tomar aquela atitude. Agora só restava esperar. Ligou a televisão para se distrair. Não quis acreditar na chamada para o Jornal das Dez:
“Jovem de 28 anos perde a vida, vítima de bala perdida, em um confronto de gangues do Morro Dona Marta. Pede-se que algum parente entre em contato com a delegacia do bairro. O nome que consta da carteira de identidade é Eulina de Jesus.”
Pobre Sueli! Virar estatística era mesmo seu destino...

Setembro de 2008

terça-feira, 16 de setembro de 2008

BURRO! BURRO!

Sylvia Regina Marin

Eram nove horas da noite quando cheguei em casa naquela quarta-feira. Estava exausta. Parece que todos os problemas do mundo tinham resolvido cair na minha cabeça ao mesmo tempo, vindos de todos os lados. O escritório era uma ebulição só. É claro que me estressei com meu chefe e quase o demiti. Epa! Acho que não foi bem assim. Ah! Não sei mais de nada. Lembro de ter descontado minha raiva na secretária – isso eu fiz! (paciência – no dia seguinte, pedi desculpas). O fato é que, enfim, consegui abrir a porta e entrar em meu apartamento.
Nunca antes tinha ficado tão feliz com uma viagem a negócios de Alfredo. (Há horas em que tudo que a gente não quer é um marido para dar atenção; se bem que uma massagenzinha nas costas teria sido providencial...) Tomei um banho morno, gostoso, e aproveitei para acariciar minha pele, merecedora que estava de um toque amoroso. Enrolei-me em um felpudo roupão cor-de-rosa e, em segundos, me senti a própria Cinderela – depois do matrimônio, é lógico – em seu palácio de cristal. É, já deu para notar que eu não estava “funcionando” direito, não é? Positivamente, o palácio da Cinderela não era de cristal: isto tinha a ver com o sapatinho.
Sapatinho... príncipe... fada-madrinha... Caí no sono. Desmaiei. Perdi a noção das coisas. As luzes ficaram acesas, a televisão ligada e, graças a Deus, o gás em off. De repente, o susto... Acordei com uma sensação de embriaguez, como se meu corpo astral estivesse bem distante do corpo físico naquele momento, e o retorno ao seu lugar de origem ocasionasse um choque assombroso.
Um clamor parecia sair das entranhas da terra. Olhei em volta. Havia uma energia densa no ar e só então me dei conta de que várias vozes ao meu redor gritavam: “Burro! Burro!” Meio atônita, percebi que os gritos vinham da rua e, certamente, não eram dirigidos à minha pessoa. Voltei a atenção para o aparelho de TV. Não acreditei no que vi: então, todo aquele barulho tinha como causa o jogo de futebol do Brasil contra a Bolívia? Era o Dunga que estava sendo xingado? Também o que se pode esperar de uma pessoa cujo apelido é Dunga? Não, eu não disse isso. Esqueçam. Deve haver uma razão justa para o apelido. Minha mãe me ensinou a ter tolerância e compaixão, e nunca fazer julgamentos. Mas Dunga...
- Burro! Burro!
O povo continuou a destilar seu ódio por um bom tempo. Aos poucos, porém, os ânimos se acalmaram, os sons foram ficando mais fracos e, durante a madrugada, o silêncio era total. Os cachorros pararam de latir. Tive a impressão de que os vizinhos pegaram no sono “numa boa”. Todos, menos eu. Bem que tentei trazer de volta o sonho de conto de fadas, mas não houve jeito, nem Lexotan, respiração tântrica, ou dança do elefantinho que me fizessem retomar o repouso abençoado. A alternativa foi pensar na vida.
- Burro? – indaguei a mim mesma. O Dunga? - tive um acesso de riso. Como somos tolos! O homem está bem de vida, tem uma casa confortável, trabalha no que gosta, mantém o corpo são e a mente idem, dorme como um anjinho (suponho), viaja um bocado às custas da gente, e ele é que é o burro?
Não quero ofender ninguém, mas sabem o que eu acho?
- Burros... somos nós!

Setembro de 2008

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A ATA E A BORBOLETA

Sylvia Regina Marin

Aparentemente, seria uma quarta-feira como outra qualquer – meio da semana, pessoas indo e vindo de seu cotidiano de horas marcadas, de tarefas por cumprir, de sonhos a realizar.
Da janela de meu apartamento, eu podia observar o movimento na rua – carros, gente, micos que pulavam de galho em galho na árvore mais alta da calçada e, suprema alegria! uma borboleta azul, que abria e fechava as asas para mim. É estranho, mas era exatamente esta a impressão que eu tinha: a borboleta queria se comunicar comigo.
Privada, por tempo determinado, do meu direito de ir e vir para onde bem entendesse, por conta de um acidente doméstico, eu dava “tratos à bola”; e posso dizer, com segurança, que, naquela quarta-feira, o que não pude ver com os olhos da face, nem ouvir, com os ouvidos que herdei por merecimento, vi e ouvi através da imaginação, com a abençoada ajuda da pequena borboleta azul.
Pois não tive outra saída. Minha reunião favorita estava para começar, a vários quilômetros de distância do local onde me encontrava; e eu ali, com o pé enfaixado, imobilizada pela providência divina.
- Pelo meu poder mental – exclamei – determino que você, borboleta azul, seja minha representante. Vá, preste bastante atenção e volte para me contar!
De início, confesso que tive pena da pobrezinha que, com tão pouco tempo para aproveitar a vida, precisaria se desincumbir da pesada tarefa de voar até Copacabana e depois fazer o trajeto de volta, em meio ao tráfego de pirilampos, mariposas, marimbondos e nem posso imaginar mais o que. Sim, seria estressante! Mas, se ela aceitou ...
Aguardei ansiosa. Será que os participantes perceberiam que eu estava presente? Sentiriam minha energia no ar? Veriam a borboleta batendo suas asas para lá e para cá, no afã de captar o que estava sendo dito? Tudo isso passava pela minha cabeça, enquanto aguardava a volta de minha pequena amiga.
O tempo de espera foi longo e quando, finalmente, a borboleta azul chegou, quase morri de remorso. Ela estava um “caco”. Não vi a hora em que ela nasceu; portanto, não sabia quanto tempo de vida ainda lhe restava. Será que eu tinha abusado do direito de ser intelectualmente mais poderosa? Bem, não me restava mais nada a não ser lamentar - o que estava feito, estava feito.
Esperei algum tempo, até que sua respiração voltasse ao normal, e fomos aos fatos. É natural que nossa comunicação tenha se dado de forma telepática, mas nem por isso foi menos eloqüente.
- Imagine você – ela me disse – que todos os convidados chegaram juntos. Quando a dona da casa abriu a porta, às dezoito horas em ponto, eles estavam no hall, de braços abertos. Desculpe se não reproduzo literalmente o que ouvi. É que falavam ao mesmo tempo: “Mamma mia”, “nonna My”, “carpaccio”, sei lá, uma língua esquisita. Havia um único macho para várias fêmeas e, obviamente, um clima de disputa se fazia sentir. Elas borboleteavam em volta dele, de maneira que precisei desviar minha rota em diversas ocasiões. Não gostei de competir com as humanas. Não foi justo. Afinal, “borboletear” é uma característica da minha personalidade. Atordoada, cheguei a perder algumas palavras. Perdoe-me. Entretanto, estou segura de ter captado a essência do que ali se passou. Mônica Bellucci, por exemplo, fez uma performance extraordinária a partir de um texto de sua autoria – uma verdadeira diva. Emanuelante Alighieri declamou vários poemas, em que abordava temas profundos como o “Inferno” e o “Espelho” – adorei! Lydianna Mangano surpreendeu a todos com a leitura dramatizada de uma peça teatral, na qual encarnava todos os personagens – atuação fulminante! Mydonna, a anfitriã, absolutamente encantada com o talento de seus convivas, curvou-se a seus pés. Para homenageá-los, entoou uma bela canção de seu repertório: Like a Virgin! Calorosas palmas ainda se ouviam no momento em que decidi regressar. Já quase chegava à esquina, quando, ao longe, ouvi um trecho de Madame Butterfly. Teria sido impressão minha ou o grupo estava fazendo uma sutil homenagem a este ser alado que lhe fala?
- Ah, borboleta azul! Delirante ou não, sua descrição dos acontecimentos fez muito bem ao meu espírito. Ouso supor que jamais haverá outra quarta-feira igual a esta!

(Ata de uma reunião da OLDI*, realizada em 20 de agosto de 2008, à qual não pude comparecer)

Agosto, 2008


* OLDI é a sigla para Oficina Literária Democrática e Independente, nome dado aos encontros quinzenais de um grupo de amigos que escreve, fala e gargalha muito. As reuniões são realizadas em Copacabana, na casa de Myriam (napolitana de nascimento, carioca de coração). A esta reunião específica só puderam comparecer três participantes: Mônica, Manoel e Lydia, além da anfitriã, naturalmente.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

PINGO DE DOCE DE LEITE

Sylvia Regina Marin

Hoje estou triste. Sei que vai passar, mas, enquanto espero, continuo triste.
Pombas! O dia está lindo, ouço os pássaros que cantam na árvore defronte à minha janela, a temperatura está agradável, estou com a saúde perfeita... Meus olhos vêem, os ouvidos escutam e os odores são captados com exatidão por minhas narinas. Ah! sim, almocei muito bem e acabei de saborear uma deliciosa xícara de café – de onde se conclui que meu paladar consegue captar os diferentes sabores que lhe são apresentados. O coração bate forte. As Olimpíadas me emocionam – como sofri quando o Diego caiu de bunda! Como Ricardo e Emanuel me fazem vibrar! E o Cielo? – nosso novo herói!
Pois é, mas está faltando uma coisa. Sabe aquele toque que faz a gente se arrepiar todinha? - que deixa o coração a disparar e a boca ficar seca? Aquele abraço apertado que faz o corpo aquecer e a gente imaginar que vai explodir? Não precisa ser Brad Pitt ou George Clooney, mas um homem forte, com uma boa pegada, era tudo que eu precisava agora. Não uma pessoa qualquer, um encontro fugaz, um amante de ocasião – mas um bom exemplar de macho, raro hoje em dia, com um invólucro de doçura, de palavra meiga, que topasse explorar comigo os caminhos do corpo e do espírito. E que essa aventura não tivesse tempo para terminar, nem local, nem destino certo. Corpos etéreos sintonizados – em um universo paralelo, talvez. Mas com a pegada firme, disso não abro mão.
Que tal? Alguém se apresenta? Organizemos a fila. Não gosto de balbúrdia. Que venham somente aqueles que se encaixam no perfil traçado. Serão poucos, com certeza. Sei que terei de ser flexível, aceitando um ajuste aqui, outro ali. Não faz mal. A vida me ensinou que adaptações são sempre necessárias. Uma condição apenas eu imponho: os lábios devem ter o sabor de um pingo de doce de leite.
É só disso que eu preciso hoje.

Agosto de 2008

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Queridos Amigos,
Sinto ter deixado meus "inúmeros" fãs na mão. Andei afastada das letras, o que me deixou muito triste. Minha vida deu uma reviravolta, o que, às vezes, é bom para driblar a monotonia. No meu caso, já que nunca tive uma vida monótona, serviu para provar que o caos existe. Não dá para contar tudo que passei nos últimos tempos. Daria um livro. Enfim, sobrevivi e ainda estou lutando. E hoje, véspera de uma reunião literária a qual não posso faltar, fiz um pequeno texto com um certo medo de ter perdido a forma. A Bia entrou e saiu diversas vezes do meu escritório para mostrar os brinquedos que ela estava separando para levar para a casa de uma amiguinha que comemora, amanhã, o aniversário de uma boneca. No meio dessa confusão, foi isso que saiu.
Beijos para todos.

CHEIRO NO AR, MACONHA NO BAR

Sylvia Regina Marin

Francisca era uma mulher altiva. Tinha estilo, como comentavam os vizinhos. Não se sabe como veio parar naquela espelunca tão no fim do mundo. As más línguas diziam que ela foi rica quando jovem. Era poderosa, dona de mansão com piscina, quadra de tênis e sabe-se lá o que mais. Parece que o marido era viciado em drogas e “torrou” a fortuna da família para sustentar o vício. História triste.
O fato é que ela apareceu naquele cantão longínquo, em uma manhã de inverno, e se instalou em um dos cômodos da casa comunitária que abrigava todo tipo de gente. O porte de Francisca chamava atenção. Ela tentava manter a dignidade apesar da sujeira e das precárias condições que a cercavam. E o povo, é claro, fazia mesuras quando ela passava. Era conhecida no pedaço como Condessa Chica.
Do outro lado da rua, bem em frente à janela do quarto de Francisca, ficava o bar. Por mais pobre que seja o bairro, há sempre um bar que reúne quem está alegre a quem está triste. A bebida serve para ambos os casos. Era nesse local que os adolescentes se juntavam para a roda de fumo. Toda noite.
Francisca passava a madrugada tossindo. Não suportava aquele cheiro, que a deixava enjoada e com a respiração ofegante – alergia antiga, mal curada. Um dia ela decidiu ir à polícia para dar queixa dos rapazes. Os policiais riram dela:
- Ora, madame, a senhora pensa que está aonde? Tem sorte que os meninos “pegam leve”. Podia ser pior, sabia?
Ela sabia. Mas não desistiu. Decidiu ir ao bar conversar com os garotos. Até que eles eram simpáticos, mais do que poderia supor. Não eram os marginais arrogantes que ela imaginava. E não é que Francisca começou a gostar daquela turma? Eles não riam dela, de sua maneira de ser. Tratavam-na de igual para igual, com respeito. Aos poucos, ela se afeiçoou a eles. Não demorou muito e um dia Manduca, o líder do grupo, lhe fez a proposta:
- Tia, experimenta unzinho.
Francisca não resistiu ao jeito sedutor de Manduca. Experimentou. Tossiu um pouco, mas foi em frente. E, desse jeito, ela passou a fazer parte da turma da fumaça. A alergia? Vejam vocês, nem lembra mais que um dia existiu. Encontrou seu lugar no pedaço de mundo que a ela estava destinado.
Hoje, quando sente o cheiro característico no ar, já sabe. Está na hora.

Agosto de 2008