quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Minha amiga Leila, que acompanha, de Petrópolis, as "literatices" que apronto aqui do Rio, me deu uma sugestão há uns dias atrás. Como estamos em plena comemoração pelos 100 anos da morte de Machado de Assis, e "pipocam" cursos, seminários e palestras pela cidade sobre este grande romancista, ela me "soprou" lá do alto da serra:
- Sylvia, porque você não sugere ao seu grupo literário o tema "Amor e ciúme", tão recorrente na obra de Machado?
Pois fiz exatamente isto. O grupo, não só aceitou, como acrescentou uma palavra ao tema, que passou a ser: "Amor, ciúme e traição".
Aí vai o texto que escrevi:

EU NÃO SOU CAPITU!

Sylvia Regina Marin

Marta se arruma com esmero. Põe seu melhor vestido – um branco de bolinhas vermelhas que o marido lhe deu de presente faz muito tempo. Está fora de moda, ela sabe, mas quem se importa? Batom nos lábios, uma leve sombra azul nos olhos, sandálias de salto alto – e pronto! Não falta mais nada.
Alvinho está vestido há horas. Nervoso, chama pela mãe:
- Vamos logo, mainha. Tenho que chegar cedo ao teatro.
Marta nunca foi ao teatro. Está emocionada. Quando ela poderia imaginar que seu menino seria o ator principal de uma peça? Tudo invenção de D. Carmem, a nova professora do grupo escolar, que cismou de fazer uma comemoração pelos cem anos da morte de Machado de Assis. Diz ela que esse tal Machado foi um grande escritor. Ah! E Marta lá tem tempo para ler alguma coisa? O máximo que faz é passar os olhos pelo boletim de Alvinho.
Agora, sai toda orgulhosa de casa. Os vizinhos chegam à janela para bisbilhotar. Não estão acostumados a vê-la assim, nesses “trinques”. Com o nariz empinado, ela não economiza pose. De mãos dadas com o filho, desce o morro – ainda tem um bom chão para andar até a escola. O teatro foi improvisado em um velho auditório, lavado e pintado pelos próprios alunos.
Alvinho faz o maior mistério. Não quis, de jeito nenhum, contar o enredo da peça para a mãe. Marta só sabe que o nome de seu personagem é Bentinho. Nada mais ele deixou escapar. Juntos, atravessam a avenida principal – cúmplices no afeto, felizes pela expectativa do que está para acontecer.
Chegam, finalmente, ao seu destino. O palco já está iluminado e as pessoas se acomodam em suas poltronas. Marta consegue um lugar na primeira fila. Aguarda ansiosa. Sente a vibração que agita os bastidores e torce pelo filho, que tantas alegrias lhe dá. Mais alguns instantes, e ouve-se o som de uma campainha, que toca três vezes. Silêncio agora. A cortina se abre.
Marta acompanha tudo inquieta, palavra por palavra, cena após cena, sem pestanejar. O coração descompassa.
- Como é que Machado ficou sabendo dessa história? – pergunta-se atônita.
Um filme passa por sua cabeça. Relembra a vinda da família para o Rio de Janeiro, onde ninguém os conhecia; a dúvida que corroeu seu marido ao ver Alvinho na maternidade, tão branco que nem parecia seu filho; o sofrimento que viu, durante anos, nos olhos de seu parceiro. Agora, que estava tudo tão bem, as mentes aquietadas, tinha que aparecer esse Machado para reacender a fogueira que já tinha se extinguido em seu peito?
A peça termina. Marta chora copiosamente. Do palco, Alvinho ouve os soluços da mãe e estufa o peito:
- Puxa, mainha gostou mesmo!
Marta não lembra se aplaudiu. Só recorda de ter ficado muito tempo ali sentada, ouvindo o burburinho em volta. De repente, Alvinho estava de pé à sua frente, sorrindo.
- Como você cresceu, meu menino! – não tinha notado como ele estava alto.
Abraçaram-se.
Voltaram para casa calados – cada um com suas próprias emoções a serem elaboradas.
Na subida do morro, encontraram João, o dono da venda, que quis fazer graça, coitado, e disse para Marta:
- Comadre, você está muito bonita hoje. Onde foi a festa? Sente aqui um pouquinho antes de ir para casa. Se chegar assim, com esses olhinhos de ressaca, o compadre vai desconfiar...
Aquilo foi demais para Marta. E, para espanto de João e de Alvinho, ela explodiu em lágrimas novamente e gritou:
- Eu não sou Capitu! Eu não sou Capitu!

Outubro de 2008