sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A PRIMEIRA VEZ DE NATALIE


Sylvia Regina Marin

O sol já ia se pôr. Manoel chegaria em poucos instantes.
- Parece que foi ontem mesmo que meu bebê nasceu... – pensava Aline, nervosa, a andar pela sala de um lado para o outro. Não conseguia imaginar que sua pequena Natalie, ainda tão despreparada para o mundo, estaria, dali a alguns instantes... não, não, era demais para sua cabeça.
Duvidava de que Manoel fosse a pessoa certa para acompanhá-la nessa aventura. Mas, que bobagem, é claro que ela podia confiar nele - era experiente e maduro. A filha estaria bem protegida.
Natalie sorria, vendo a ansiedade da mãe. Para uma mulher moderna, antenada, como Aline, era um pouco over essa atitude grotesca, quase histérica, eu diria “careta” que tomava conta de sua pessoa. Ela tinha noção do quanto estava sendo ridícula, mas não conseguia se controlar.
Pegou um agasalho.
- Pode esfriar na volta!
Apertou Natalie contra o peito e, movida pelo extremo amor que sentia, balbuciou as mesmas recomendações que havia feito durante o dia todo. Não era demais repetir.
Manoel chegou. Natalie o olhou com ternura e abriu um sorriso encantador, que quase o fez babar de emoção. Troca cúmplice de olhares, um beijo tímido e casto – tudo isso, em vez de melhorar o estado de espírito de Aline, só fez aumentar sua neurose. Suava em bicas. E não era menopausa. Ainda era muito jovem para essas coisas. Os nervos estavam à flor da pele.
Mas a hora tinha chegado, a decisão estava tomada e não havia retorno. Dirigiram-se para a porta do apartamento. Aline ainda ia parar para ajeitar a roupa da filha, quando Manoel declarou categórico:
- Vamos!
Deste minuto em diante, Aline passou a não ser mais dona da situação. Perdeu completamente o controle e se deixou levar pelos desígnios da sorte. Afinal, não dizem que criamos os filhos para o mundo?
Saíram a pé por Copacabana. E foi assim que aconteceu. Com Manoel de um lado e Aline do outro, Natalie chegou à sua primeira reunião literária na casa de Myriam. Todo o nervosismo de Aline tinha sido pura perda de tempo. Do alto de seus dois meses de vida, Natalie se comportou muito bem, mamou bastante, foi “paparicada” por todos e ainda recebeu o título de princesa.
Nós amamos a presença de Natalie. E tivemos o cuidado, cada um de nós, de plantar em seu coração a sementinha do amor pela poesia e pelas belas palavras.
- Que elas floresçam, Natalie! Queira sua mãe ou não, você já foi contaminada!

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Bala Perdida

Sylvia Regina Marin

Segunda-feira de manhã. O trem ia lotado. Já era a terceira condução de Sueli naquele dia, e ainda faltava saltar na Central, pegar o metrô até Botafogo e depois o ônibus para o Humaitá. Fazia esse mesmo trajeto toda segunda-feira. Durante a semana, dormia na casa da patroa. Era mais cômodo. Rezou tanto para seu anjo-da-guarda que conseguiu sentar. Ficou espremida entre uma mulher obesa e um homem de pernas abertas, mas tudo bem.
- Obrigada, meu anjinho – rezou ela.
O balanço do trem a fez pegar no sono. De início, os olhos abriam e fechavam – ela fazia força para não dormir. Tinha medo que lhe roubassem a bolsa. Mas aquela sensação gostosa foi mais forte que sua vontade, e Sueli acabou relaxando. Sonhou que ainda era criança, que ainda vivia naquele curto período de inocência entre os primeiros passos e as primeiras frustrações. Sua mãe a chamava:
- Eulina! Eulina!
Ah sim, esqueci de dizer que Sueli era o nome com o qual Eulina se apresentava às pessoas. Ela detestava seu nome. Aliás, ela odiava tudo que dizia respeito a si própria – sua origem humilde, a pele manchada pelo vitiligo, o cabelo seco e quebradiço, o padrasto que a maltratava. Dizia que tinha vindo ao mundo para sofrer. Pobre Sueli – tão carente e infeliz!
Mas o sonho era bom. Ela corria às gargalhadas enquanto a mãe tentava pegá-la. O jardim estava florido, o parque cheio de meninos e meninas que tinham acabado de sair da escola – e Sueli, alegre, flutuava e se escondia atrás de cada arbusto do caminho. Até que jogaram uma pedra, com força, em sua perna esquerda. Que dor danada! Gritos. Empurrões. Acordou assustada.
- Não se tem mais sossego nesta terra – bradiu o homem a seu lado.
Foi preciso que transcorressem uns minutos para que Sueli entendesse o que estava acontecendo. O buraco na janela do trem e a bala encravada no chão, bem perto dos seus pés, davam uma idéia do que tinha ocorrido.
- Moça, a senhora nasceu de novo – falou a mulher obesa.
- Eu estava dormindo – respondeu Sueli. Imagine só, levei uma pedrada no sonho. Podia jurar que era de verdade. Está até doendo... Foi bem aqui.
Levantou a saia com discrição para massagear a pele dolorida e lá estava ela, a marca – não da pedra – mas da bala que a tinha atingido. Começou a chorar. O pedaço de músculo duro e avermelhado era mais uma prova daquilo que ela já sabia – era a última das mulheres.
Exagero, sem dúvida, mas foi, assim, fungando, que ela chegou ao trabalho. A patroa estava meio nervosa:
- Atrasada de novo, Sueli... O que houve? Mais uma tragédia na vizinhança?
- Foi comigo mesma, patroa. Veja com seus próprios olhos.
- Bem, você sobreviveu, não é? Deu queixa na polícia?
- Pra que, madame? O que a senhora acha que os policiais vão fazer? É bem capaz que eles me expulsem da delegacia. Pobre é que nem barata. Se bobear, eles pisam na gente. Depois, podem pedir meus documentos, e aí vai todo mundo saber meu nome.
- Ora, Sueli. Que bobagem! Ninguém vai ligar para o seu nome e, mesmo que não façam nada, seu caso vai ser registrado e será parte de uma estatística. Isso é muito importante!
A moça ficou animada. Fosse lá o que fosse essa tal de estatística, quem sabe ela ia ficar famosa? A patroa não disse que era importante? Ela não podia perder a oportunidade. Não é todo dia que aparece uma coisa assim na vidinha sem graça de pessoas como ela.
À tarde, com os afazeres domésticos prontos, arrumou-se o melhor que pôde e foi até a delegacia mais próxima. Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali sentada, à espera de ser atendida. Quando a patroa chegou em casa, do trabalho, Sueli ainda não tinha voltado.
As horas passavam e Sueli... nada. A patroa se inquietou. Mas que demora! Já estava arrependida de ter incentivado a empregada a tomar aquela atitude. Agora só restava esperar. Ligou a televisão para se distrair. Não quis acreditar na chamada para o Jornal das Dez:
“Jovem de 28 anos perde a vida, vítima de bala perdida, em um confronto de gangues do Morro Dona Marta. Pede-se que algum parente entre em contato com a delegacia do bairro. O nome que consta da carteira de identidade é Eulina de Jesus.”
Pobre Sueli! Virar estatística era mesmo seu destino...

Setembro de 2008

terça-feira, 16 de setembro de 2008

BURRO! BURRO!

Sylvia Regina Marin

Eram nove horas da noite quando cheguei em casa naquela quarta-feira. Estava exausta. Parece que todos os problemas do mundo tinham resolvido cair na minha cabeça ao mesmo tempo, vindos de todos os lados. O escritório era uma ebulição só. É claro que me estressei com meu chefe e quase o demiti. Epa! Acho que não foi bem assim. Ah! Não sei mais de nada. Lembro de ter descontado minha raiva na secretária – isso eu fiz! (paciência – no dia seguinte, pedi desculpas). O fato é que, enfim, consegui abrir a porta e entrar em meu apartamento.
Nunca antes tinha ficado tão feliz com uma viagem a negócios de Alfredo. (Há horas em que tudo que a gente não quer é um marido para dar atenção; se bem que uma massagenzinha nas costas teria sido providencial...) Tomei um banho morno, gostoso, e aproveitei para acariciar minha pele, merecedora que estava de um toque amoroso. Enrolei-me em um felpudo roupão cor-de-rosa e, em segundos, me senti a própria Cinderela – depois do matrimônio, é lógico – em seu palácio de cristal. É, já deu para notar que eu não estava “funcionando” direito, não é? Positivamente, o palácio da Cinderela não era de cristal: isto tinha a ver com o sapatinho.
Sapatinho... príncipe... fada-madrinha... Caí no sono. Desmaiei. Perdi a noção das coisas. As luzes ficaram acesas, a televisão ligada e, graças a Deus, o gás em off. De repente, o susto... Acordei com uma sensação de embriaguez, como se meu corpo astral estivesse bem distante do corpo físico naquele momento, e o retorno ao seu lugar de origem ocasionasse um choque assombroso.
Um clamor parecia sair das entranhas da terra. Olhei em volta. Havia uma energia densa no ar e só então me dei conta de que várias vozes ao meu redor gritavam: “Burro! Burro!” Meio atônita, percebi que os gritos vinham da rua e, certamente, não eram dirigidos à minha pessoa. Voltei a atenção para o aparelho de TV. Não acreditei no que vi: então, todo aquele barulho tinha como causa o jogo de futebol do Brasil contra a Bolívia? Era o Dunga que estava sendo xingado? Também o que se pode esperar de uma pessoa cujo apelido é Dunga? Não, eu não disse isso. Esqueçam. Deve haver uma razão justa para o apelido. Minha mãe me ensinou a ter tolerância e compaixão, e nunca fazer julgamentos. Mas Dunga...
- Burro! Burro!
O povo continuou a destilar seu ódio por um bom tempo. Aos poucos, porém, os ânimos se acalmaram, os sons foram ficando mais fracos e, durante a madrugada, o silêncio era total. Os cachorros pararam de latir. Tive a impressão de que os vizinhos pegaram no sono “numa boa”. Todos, menos eu. Bem que tentei trazer de volta o sonho de conto de fadas, mas não houve jeito, nem Lexotan, respiração tântrica, ou dança do elefantinho que me fizessem retomar o repouso abençoado. A alternativa foi pensar na vida.
- Burro? – indaguei a mim mesma. O Dunga? - tive um acesso de riso. Como somos tolos! O homem está bem de vida, tem uma casa confortável, trabalha no que gosta, mantém o corpo são e a mente idem, dorme como um anjinho (suponho), viaja um bocado às custas da gente, e ele é que é o burro?
Não quero ofender ninguém, mas sabem o que eu acho?
- Burros... somos nós!

Setembro de 2008

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A ATA E A BORBOLETA

Sylvia Regina Marin

Aparentemente, seria uma quarta-feira como outra qualquer – meio da semana, pessoas indo e vindo de seu cotidiano de horas marcadas, de tarefas por cumprir, de sonhos a realizar.
Da janela de meu apartamento, eu podia observar o movimento na rua – carros, gente, micos que pulavam de galho em galho na árvore mais alta da calçada e, suprema alegria! uma borboleta azul, que abria e fechava as asas para mim. É estranho, mas era exatamente esta a impressão que eu tinha: a borboleta queria se comunicar comigo.
Privada, por tempo determinado, do meu direito de ir e vir para onde bem entendesse, por conta de um acidente doméstico, eu dava “tratos à bola”; e posso dizer, com segurança, que, naquela quarta-feira, o que não pude ver com os olhos da face, nem ouvir, com os ouvidos que herdei por merecimento, vi e ouvi através da imaginação, com a abençoada ajuda da pequena borboleta azul.
Pois não tive outra saída. Minha reunião favorita estava para começar, a vários quilômetros de distância do local onde me encontrava; e eu ali, com o pé enfaixado, imobilizada pela providência divina.
- Pelo meu poder mental – exclamei – determino que você, borboleta azul, seja minha representante. Vá, preste bastante atenção e volte para me contar!
De início, confesso que tive pena da pobrezinha que, com tão pouco tempo para aproveitar a vida, precisaria se desincumbir da pesada tarefa de voar até Copacabana e depois fazer o trajeto de volta, em meio ao tráfego de pirilampos, mariposas, marimbondos e nem posso imaginar mais o que. Sim, seria estressante! Mas, se ela aceitou ...
Aguardei ansiosa. Será que os participantes perceberiam que eu estava presente? Sentiriam minha energia no ar? Veriam a borboleta batendo suas asas para lá e para cá, no afã de captar o que estava sendo dito? Tudo isso passava pela minha cabeça, enquanto aguardava a volta de minha pequena amiga.
O tempo de espera foi longo e quando, finalmente, a borboleta azul chegou, quase morri de remorso. Ela estava um “caco”. Não vi a hora em que ela nasceu; portanto, não sabia quanto tempo de vida ainda lhe restava. Será que eu tinha abusado do direito de ser intelectualmente mais poderosa? Bem, não me restava mais nada a não ser lamentar - o que estava feito, estava feito.
Esperei algum tempo, até que sua respiração voltasse ao normal, e fomos aos fatos. É natural que nossa comunicação tenha se dado de forma telepática, mas nem por isso foi menos eloqüente.
- Imagine você – ela me disse – que todos os convidados chegaram juntos. Quando a dona da casa abriu a porta, às dezoito horas em ponto, eles estavam no hall, de braços abertos. Desculpe se não reproduzo literalmente o que ouvi. É que falavam ao mesmo tempo: “Mamma mia”, “nonna My”, “carpaccio”, sei lá, uma língua esquisita. Havia um único macho para várias fêmeas e, obviamente, um clima de disputa se fazia sentir. Elas borboleteavam em volta dele, de maneira que precisei desviar minha rota em diversas ocasiões. Não gostei de competir com as humanas. Não foi justo. Afinal, “borboletear” é uma característica da minha personalidade. Atordoada, cheguei a perder algumas palavras. Perdoe-me. Entretanto, estou segura de ter captado a essência do que ali se passou. Mônica Bellucci, por exemplo, fez uma performance extraordinária a partir de um texto de sua autoria – uma verdadeira diva. Emanuelante Alighieri declamou vários poemas, em que abordava temas profundos como o “Inferno” e o “Espelho” – adorei! Lydianna Mangano surpreendeu a todos com a leitura dramatizada de uma peça teatral, na qual encarnava todos os personagens – atuação fulminante! Mydonna, a anfitriã, absolutamente encantada com o talento de seus convivas, curvou-se a seus pés. Para homenageá-los, entoou uma bela canção de seu repertório: Like a Virgin! Calorosas palmas ainda se ouviam no momento em que decidi regressar. Já quase chegava à esquina, quando, ao longe, ouvi um trecho de Madame Butterfly. Teria sido impressão minha ou o grupo estava fazendo uma sutil homenagem a este ser alado que lhe fala?
- Ah, borboleta azul! Delirante ou não, sua descrição dos acontecimentos fez muito bem ao meu espírito. Ouso supor que jamais haverá outra quarta-feira igual a esta!

(Ata de uma reunião da OLDI*, realizada em 20 de agosto de 2008, à qual não pude comparecer)

Agosto, 2008


* OLDI é a sigla para Oficina Literária Democrática e Independente, nome dado aos encontros quinzenais de um grupo de amigos que escreve, fala e gargalha muito. As reuniões são realizadas em Copacabana, na casa de Myriam (napolitana de nascimento, carioca de coração). A esta reunião específica só puderam comparecer três participantes: Mônica, Manoel e Lydia, além da anfitriã, naturalmente.