segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Bala Perdida

Sylvia Regina Marin

Segunda-feira de manhã. O trem ia lotado. Já era a terceira condução de Sueli naquele dia, e ainda faltava saltar na Central, pegar o metrô até Botafogo e depois o ônibus para o Humaitá. Fazia esse mesmo trajeto toda segunda-feira. Durante a semana, dormia na casa da patroa. Era mais cômodo. Rezou tanto para seu anjo-da-guarda que conseguiu sentar. Ficou espremida entre uma mulher obesa e um homem de pernas abertas, mas tudo bem.
- Obrigada, meu anjinho – rezou ela.
O balanço do trem a fez pegar no sono. De início, os olhos abriam e fechavam – ela fazia força para não dormir. Tinha medo que lhe roubassem a bolsa. Mas aquela sensação gostosa foi mais forte que sua vontade, e Sueli acabou relaxando. Sonhou que ainda era criança, que ainda vivia naquele curto período de inocência entre os primeiros passos e as primeiras frustrações. Sua mãe a chamava:
- Eulina! Eulina!
Ah sim, esqueci de dizer que Sueli era o nome com o qual Eulina se apresentava às pessoas. Ela detestava seu nome. Aliás, ela odiava tudo que dizia respeito a si própria – sua origem humilde, a pele manchada pelo vitiligo, o cabelo seco e quebradiço, o padrasto que a maltratava. Dizia que tinha vindo ao mundo para sofrer. Pobre Sueli – tão carente e infeliz!
Mas o sonho era bom. Ela corria às gargalhadas enquanto a mãe tentava pegá-la. O jardim estava florido, o parque cheio de meninos e meninas que tinham acabado de sair da escola – e Sueli, alegre, flutuava e se escondia atrás de cada arbusto do caminho. Até que jogaram uma pedra, com força, em sua perna esquerda. Que dor danada! Gritos. Empurrões. Acordou assustada.
- Não se tem mais sossego nesta terra – bradiu o homem a seu lado.
Foi preciso que transcorressem uns minutos para que Sueli entendesse o que estava acontecendo. O buraco na janela do trem e a bala encravada no chão, bem perto dos seus pés, davam uma idéia do que tinha ocorrido.
- Moça, a senhora nasceu de novo – falou a mulher obesa.
- Eu estava dormindo – respondeu Sueli. Imagine só, levei uma pedrada no sonho. Podia jurar que era de verdade. Está até doendo... Foi bem aqui.
Levantou a saia com discrição para massagear a pele dolorida e lá estava ela, a marca – não da pedra – mas da bala que a tinha atingido. Começou a chorar. O pedaço de músculo duro e avermelhado era mais uma prova daquilo que ela já sabia – era a última das mulheres.
Exagero, sem dúvida, mas foi, assim, fungando, que ela chegou ao trabalho. A patroa estava meio nervosa:
- Atrasada de novo, Sueli... O que houve? Mais uma tragédia na vizinhança?
- Foi comigo mesma, patroa. Veja com seus próprios olhos.
- Bem, você sobreviveu, não é? Deu queixa na polícia?
- Pra que, madame? O que a senhora acha que os policiais vão fazer? É bem capaz que eles me expulsem da delegacia. Pobre é que nem barata. Se bobear, eles pisam na gente. Depois, podem pedir meus documentos, e aí vai todo mundo saber meu nome.
- Ora, Sueli. Que bobagem! Ninguém vai ligar para o seu nome e, mesmo que não façam nada, seu caso vai ser registrado e será parte de uma estatística. Isso é muito importante!
A moça ficou animada. Fosse lá o que fosse essa tal de estatística, quem sabe ela ia ficar famosa? A patroa não disse que era importante? Ela não podia perder a oportunidade. Não é todo dia que aparece uma coisa assim na vidinha sem graça de pessoas como ela.
À tarde, com os afazeres domésticos prontos, arrumou-se o melhor que pôde e foi até a delegacia mais próxima. Perdeu a noção de quanto tempo ficou ali sentada, à espera de ser atendida. Quando a patroa chegou em casa, do trabalho, Sueli ainda não tinha voltado.
As horas passavam e Sueli... nada. A patroa se inquietou. Mas que demora! Já estava arrependida de ter incentivado a empregada a tomar aquela atitude. Agora só restava esperar. Ligou a televisão para se distrair. Não quis acreditar na chamada para o Jornal das Dez:
“Jovem de 28 anos perde a vida, vítima de bala perdida, em um confronto de gangues do Morro Dona Marta. Pede-se que algum parente entre em contato com a delegacia do bairro. O nome que consta da carteira de identidade é Eulina de Jesus.”
Pobre Sueli! Virar estatística era mesmo seu destino...

Setembro de 2008

Um comentário:

Beth/Lilás disse...

Hummmmm, que texto legal!
Bem conjugado com o dia-a-dia conturbado do brasileiro.
beijão e fica com Deus!