segunda-feira, 31 de março de 2008

Minha irmã Berê acabou de me avisar que andou divulgando meu blog entre os amigos dela. Não é fofinha? Já teve até "feedback" de alguns amigos, que estão curtindo (ou pelo menos, dizem que estão, por serem gentis, sabe-se lá). De qualquer forma, fico feliz. Gente, minha sobrinha Alexandra e o José Ronaldo (o maridão) estão indo para o Hawai amanhã. Que chique... Fizeram até aulas de surfe no Recreio para não darem muita pinta de turista na terra das grandes ondas. O Zé já fez todo o roteiro. Vão chegar lá sabendo mais sobre a terra do que os locais. Boa viagem, meus queridos! Fico satisfeita que eles possam curtir bastante a vida. Já estiveram em Portugal e na Espanha este ano. Aproveitaram para visitar minha filhota em Barcelona, é claro!

E já que o assunto é família, meu texto de hoje é ...

ASSUNTO DE FAMÍLIA

Sylvia Regina Marin

Mário Barroso se considera um homem justo. Casado há vinte e um anos com Lidiane, pai de um casal de adolescentes, está sempre atento às necessidades de sua própria família, assim como as da única irmã – desempregada, no momento – e as da mãe, viúva e já bem velhinha. Os sogros o veneram, não só pelo carinho com que trata a todos, mas pela maneira digna como conduz a vida.
O senso de justiça de Mário chega a ser irritante, às vezes, pela rigidez de suas idéias. Ele bem que poderia ser um pouco mais flexível, mas ninguém é perfeito. Bete, sua filha, costuma dizer:
- Papai - não tenho dúvidas - o Rei Salomão reencarnou em você.
Ele sorri orgulhoso. A ironia de Bete lhe soa como elogio, e a menina dá de ombros.
- Melhor assim – pensa – com tanta gente violenta no mundo, ter um pai como o meu é uma bênção.
Hoje, porém, alguma coisa estranha está acontecendo. Quando ele desce para o café da manhã, todos notam a fisionomia tensa e o vinco que se forma em sua testa sempre que algum problema grave o aflige. Não diz nada. Dá uma folheada rápida no jornal, bebe um gole de café e sai para o escritório. Um ponto de interrogação surge no olhar de cada um, mas todos respeitam o silêncio do chefe da casa.
Mário é dono de uma corretora de seguros. Está habituado a lidar com situações difíceis. Toma decisões rapidamente e é firme em suas atitudes. Por este motivo, é respeitado e admirado por funcionários e colaboradores. Pela primeira vez na vida, no entanto, ele hesita. Sabe que, ao entrar no escritório, a primeira pessoa a lhe dar bom-dia será Lúcia, a recepcionista: Lúcia, a moça pobre, que pega três conduções para chegar ao trabalho, que leva marmita de casa para economizar os vales-refeição, que foi admitida na empresa como faxineira e, por valor próprio, chegou onde está. Lúcia – ela mesma - é a razão de sua inquietude.
Nos últimos meses, Mário vem observando as olheiras profundas e o ar abatido da jovem. Por diversas vezes, lhe perguntou, com delicadeza, se ela estava passando por alguma dificuldade. Invariavelmente, sua resposta era:
- Nada não, dr. Barroso, é assunto de família.
No trabalho, Lúcia mantém-se eficiente. É atenciosa ao telefone, recebe os clientes com cortesia e passa todos os recados sem esquecer de nenhum detalhe. Mesmo assim, Mário não se sente confortável. Um dos lemas de sua administração à frente da empresa é exatamente o de que trabalhador competente é o que se sente satisfeito no ambiente de trabalho – daí o empenho em se mostrar solícito e disponível. Sente-se traído quando alguém do grupo tenta esconder algo que sua perspicácia já detectou.
- Será que Lúcia está grávida e tem vergonha de falar? – é o que lhe vem à cabeça.
Ontem chamou a auxiliar de serviços gerais, dona Severina, para conversar. Foi ela quem lhe apresentou Lúcia há dois anos.
- Dona Severina, se não me engano, quando Lúcia veio trabalhar conosco, a senhora me disse que ela era órfã de pai e mãe e não tinha nenhum outro parente. Isso é verdade?
- É, dr. Barroso, ela foi criada pela avó, que morreu há três anos.
- Ela tem namorado?
- Não senhor, é do trabalho para casa e da casa para a igreja. Nem amigos ela tem.
- Preste atenção, Severina, isto é muito sério. A senhora me garante que Lúcia não tem família, nenhum primo afastado, nada?
- Tenho certeza absoluta, dr. Barroso. Porque?
- Não posso lhe dizer agora, mas preciso ter uma conversa séria com essa menina amanhã de manhã.
Mário Barroso não admite mentiras. Ele se identifica integralmente com o personagem do livro “O Caçador de Pipas” que diz ao filho, no intuito de educá-lo, que “roubar é o único pecado que existe, e, quando uma pessoa mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade.” Ora, se Lúcia não tem família, nem namorado, porque o enganou, ao mencionar assuntos de uma família inexistente?
Mário não se conforma. Seu primeiro impulso é despedir a funcionária pecadora. Mas, durante a noite, com a cabeça fria, a dúvida se instala em seu coração. Afinal, ele não é um monstro e, para ser sincero, não existe nenhuma queixa profissional contra ela.
É com este confuso estado de espírito que abre a porta de vidro da corretora, às nove horas dessa manhã de inverno.
- Bom dia, dr. Barroso – apressa-se Lúcia, com o olhar melancólico.
- Venha à minha sala, por favor.
Lúcia treme. (O chefe não está com uma cara boa.)
O que acontece entre aquelas quatro paredes ninguém sabe. Não se ouve um suspiro do lado de fora. O clima, no escritório, fica pesado: tensão no ar. Uma hora depois, a moça sai com os olhos vermelhos – evidentemente, chorou. Retorna ao posto de trabalho. Funga um pouco de vez em quando, mas é visível que a alegria voltou ao seu semblante. Apesar da curiosidade, os colegas não se atrevem a fazer perguntas. E o expediente retoma o ritmo habitual. Durante o dia, sempre que Mário passa pela recepção, dá um aceno carinhoso para Lúcia e indaga:
- Tudo bem, minha filha?
Ela sorri em resposta.
Não me peçam para dizer o que houve lá dentro. Não sei. Eu não estava lá... Só sei que, nessa mesma noite, à mesa do jantar, Mário se dirige a Lidiane:
- Meu bem, você se importa que eu convide a Lúcia, nossa recepcionista, para passar o fim-de-semana conosco em Teresópolis? Ela é uma menina tão solitária, não tem família... Além do mais, você, Bete e Guto gostam tanto dela...
- É claro, querido. Faça isso. Engraçado, sempre penso na Lúcia quando recordo de nosso primeiro bebê, que perdemos. Eles teriam a mesma idade.
Mário abraça sua mulher com amor, e ficam assim abraçados durante alguns minutos. Uma lágrima de emoção rola pelo canto de seus olhos.

Março, 2008

quinta-feira, 27 de março de 2008

No sábado passado, saindo do shopping Iguatemi, vínhamos à noite por uma rua bem arborizada e um pouco escura, de carro, quando minha neta Bia saiu-se com esta: "Vovó, nosso planeta está muito sinistro!" Não quis alarmá-la, reconhecendo a verdade de sua constatação, já que a visão que ela tem sobre o assunto ainda é um tanto "verde" e não elaborada. Mas essas criaturinhas de quatro anos têm antenas, ligadas 24 horas. Os pirralhos falam sobre D. João VI e Carlota Joaquina com a maior naturalidade. No outro dia, eu estava lendo jornal e ela veio correndo me mostrar uma foto. "Olha só o retrato do Oscar Niemeyer! Vovó, você sabe que ele já tem 100 anos e ainda constrói edifícios?" Bem, tive de explicar que "construir" não é exatamente o que ele faz. Imagina, o pobre coitado carregando tijolo, pegando no pesado...
E já que o assunto é "criança", meu texto de hoje será leve como uma pluma. Espero que gostem!

LEVEZA

Sylvia Regina Marin

Hoje acordei leve. Dormi um sono gostoso... Lembro que a última coisa que fiz, antes de ir para a cama, foi dedilhar, ao piano, a “Rêve D´Amour”, de Lizst. Fez tão bem ao meu espírito... O lençol limpinho, a temperatura amena e meu amado se aconchegando em meus braços foram o complemento para que a mente entrasse em sintonia com a leveza da alma. Peguei no sono rapidamente.
Tive vários sonhos, mas o último deles é que ficou registrado na memória. Eu era uma pluma, que voava sem destino ao sabor do vento. Sobrevoei rios, montanhas, cidades, às vezes ia para a esquerda, às vezes para a direita. Não importava a rota. A sensação de liberdade e a alegria da aventura eram o mais importante. Flocos de nuvens apareciam em meu caminho e eu brincava com eles. O céu azul de outono imprimia uma luminosidade única que me deixava em êxtase. Voei, voei até cansar. E aí acordei – tão leve que parecia ter perdido uns dez quilos durante a noite.
De fato, ao abrir os olhos, tive a impressão de levitar. Que coisa boa! Tomei um banho morno, preparei um caprichado café-da-manhã e folheei o jornal. O anúncio de um programa de balé no Teatro Municipal me chamou a atenção. Aliás, isso é normal. Sou fascinada pelo mundo das sapatilhas. Mas, sabe que a pluma não saía da minha cabeça?
Saí rodopiando pela sala feito uma tonta. Meu amado, com a tolha de banho envolta no corpo, veio rindo pelo corredor:
- Amore mio, o que é isto? Você foi atacada pela síndrome de Copélia? Ou seria Gisele? Julieta? Odete?
- Nada disso. Sou uma pluma dançante. Conceda-me a honra de um “pas-de-deux”, meu príncipe.
- Ai, que a toalha vai cair e ainda sou capaz de pisar na pluma...
- Venha, tente... Escaparei dos seus desajeitados pés com a suavidade da minha essência. Entregue-se ao desvario de sua diáfana companheira.
Não deu para escapar. Caímos os dois no chão às gargalhadas. Há muito tempo não ríamos tanto.
Agora, estou aqui, dentro do carro, parada no sinal vermelho, rumo ao trabalho. Cantarolo baixinho, feliz da vida. O trânsito não me incomoda, o motoqueiro que quase arranca o espelho retrovisor do carro não me aborrece, a expectativa de ter de enfrentar a cara amarrada do meu chefe não me estressa. Sabe o que mais? Não vou permitir que invadam meu espaço. Toda vez que alguma coisa pesada tentar se aproximar de mim, vou me visualizar como uma pluma – ágil, escorregadia, veloz. Quero continuar a sentir esta sensação de leveza para sempre.
Será que vou conseguir?

Março de 2008

quinta-feira, 20 de março de 2008

Hoje é quinta-feira santa. Já se foi o tempo em que eu era obrigada pela família a fazer peregrinação pelas igrejas, para reverenciar o Cristo morto. Coisa fúnebre. Coisas de uma religião que dá valor à morbidez, ao sofrimento e à culpa para se chegar ao paraíso. Não tenho nada contra os praticantes e respeito a crença de cada um, mas, com o passar dos anos, fui levada a outros caminhos. Minha devoção se direciona para a Mãe Divina, a Natureza, meu eu superior, os espíritos iluminados que nos mostram nossos verdadeiros caminhos. Entrego, confio, aceito e agradeço. E vamos em frente!

O título do texto de hoje é FORROBODÓ. Alguns títulos poderão parecer estranhos, mas existe uma explicação. Um dos grupos de literatura do qual faço parte se chama Esquina Literária. A mentora do grupo, professora Lice Enderlein, sugere um tema a cada semana. A partir deste tema, cada pessoa do grupo escreve aquilo que lhe vier à cabeça, desde que se atenha ao assunto proposto. Saem coisas do arco da velha! Vejam o que criei para o "Forrobodó":

FORROBODÓ

Sylvia Regina Marin

Conheci Michael quando éramos ambos adolescentes, já faz muito tempo. Eu, brasileira da gema, uma mistura de raças bem balanceada, morena, exótica para os padrões europeus. Michael, um inglês típico, louro, alto, de olhos azuis, pele mais branca que a da Branca de Neve. Onde? Florença, o berço da cultura e da arte italiana.
Apreciávamos o David, de Michelangelo, na Accademia di Belle Arte: Michael, interessadíssimo nas curvas sinuosas da magnífica escultura em mármore. Eu, bem, examinava tudo de um modo geral, mas me detinha naquela parte anatômica protuberante da região inferior pélvica frontal, e me perguntava, mentalmente, se todos os homens seriam iguais. Neste momento, nos esbarramos. As pastas que eu carregava com meus desenhos se espalharam pelo chão – era folha para todo canto – e o rapaz, nervoso, corria de um lado para outro, a recolher tudo com estardalhaço: “Sorry, sorry!”
Não pude deixar de rir. Minha “vasta” experiência de vida apontava os ingleses como homens formais, sérios, sofisticados (coisas de garota que via muitos filmes sobre reis e rainhas). E Michael era o ser mais desengonçado com quem eu já tinha cruzado até então. Parecia ter mais pernas e braços do que qualquer outra pessoa. Mal pegava um desenho, já deixava cair o outro. Nesse balé “aloprado”, conseguiu juntar, de qualquer maneira, os papéis e me entregou tudo. Confesso que, embora pudesse tê-lo ajudado, não me mexi. A cena era divertida demais.
Nossa amizade começou nesse dia, e a mútua paixão pela pintura foi o ponto de partida para um relacionamento que durou um verão, e a vida toda. Línguas e culturas diversas não foram empecilho; pelo contrário, estimularam-nos a ir além, a fazer descobertas. A gente se entendia, mais ou menos, em italiano. Aprimorávamo-nos a cada dia e, com todos aqueles braços e pernas de Michael, as mímicas eram inevitáveis. Pouco a pouco, no entanto, ele começou a me parecer normal. A conversa fluía e ficávamos horas a falar sobre nossas famílias, nossos países, os planos para o futuro.
Uma tarde – lembro bem dessa tarde – estávamos sentados em um banco da Piazza Santa Maria Novella. Nossos olhos se encontraram e ficamos um tempo parados, sem dizer nada. Foi um momento perturbador. Senti que precisava contar a Michael um desejo que vinha tomando forma em minha mente havia alguns dias. Não era possível retroceder. Estava na hora.
- Michael – falei quase sem voz.
- Parla, bambina
- Io voglio vedere tuo pene.
Ele deu um pulo de susto. Era isso mesmo, eu estava decidida. Ia fazer dezesseis anos dali a alguns dias e ainda não sabia nada, nadinha, sobre os homens. As únicas partes íntimas que tinha visto eram as de David, ora. Queria ver o Michael nu para saber se “aquilo” dele era igual ao do David. Os braços e pernas extras de Michael começaram a aparecer novamente. Eu estava ficando tonta e gritei nervosa, em português mesmo:
- Pára com isso, vamos lá para casa. Mamãe saiu e vai demorar.
Fomos. Estávamos tão sem jeito... Pude perceber que ele era tão cru no assunto quanto eu. A gente olhava para o teto, para a parede, para o chão, menos para onde interessava. De lado, deu para sacar que o tamanho do dito cujo era o mesmo da estátua, nas suas devidas proporções, é claro. Afinal, o David tem cinco metros de altura. Liguei o rádio, sintonizei em uma música romântica e iniciamos umas acrobacias, mas em vão. Todas as tentativas de acabar com nossa virgindade foram frustradas.
Combinamos de continuar a exploração nos dias seguintes, isto é, sempre que fosse possível driblar a atenção de mamãe. A temporada de minha família em Florença ia terminar em duas semanas, portanto tínhamos pouco tempo. Mas que tempo bem aproveitado... Michael se revelou, seu instrumento principal dobrou de tamanho, e, juntos, fomos nos ajeitando, nos encaixando e desabrochamos para o fantástico e perigoso mundo dos adultos.
Jamais esquecerei aquele verão. Na véspera da partida, Michael teve uma idéia que me pareceu bem charmosa. Ele ia procurar uma palavra em português que fosse bonita, vibrante, e me chamaria assim para sempre. Eu faria o mesmo, mas em inglês. O que importava era a sonoridade e não o sentido da palavra. Não precisei pensar muito. Ela veio logo à minha cabeça: Bubble. Não é bonitinha?
Quase na hora da partida, Michael chegou ao aeroporto, esbaforido, vermelho de excitação. Tinha passado a noite em claro, mas encontrou a palavra certa. De longe, ele gritava: Fo – ro – bou – dóu. Dei uma gargalhada. Podia esperar tudo, menos isso.
Nossa amizade continua até hoje. Mas meu apelido, é óbvio, não pegou. Em compensação, toda vez que as famílias se encontram, meus filhos me cutucam:
- Mãe, lá vem o Forrobodó!

Janeiro de 2008

segunda-feira, 17 de março de 2008

Dei algum comando esdrúxulo e o texto ROUPA SUJA ficou todo centralizado. Não reparem, sim?
Minha terapeuta é formidável. Cheguei hoje lá com toda convicção e ela me mostrou, com uma habilidade e inteligência inegáveis, que minha transmutação está praticamente feita. Falta uma pontinha, mas é preciso insistir um pouco mais. Esse tal de inconsciente briga o tempo todo com meu lado fortemente racional, mas vou resolver esse caso, custe o que custar. Estou chegando lá. Este fim-de-semana fiz coisas que foram um bálsamo para o espírito. No sábado, assisti, no canal GNT, a um filme intitulado Bethânia é Perfume: lindo, magnetizante, emocionante, como só Maria Bethânia sabe ser. No domingo fui ao Unibanco Arteplex ver "Na Natureza Selvagem", filme dirigido pelo Sean Penn. Imperdível! De uma beleza plástica, uma sensibilidade... Fiquei arrepiada.

Aí vai mais um textinho:

ROUPA SUJA

Estranhos são os caminhos do amor; mas, como dizem que “toda forma de amar vale a pena”, penso que o fundamental nas relações humanas seja a tolerância – aceitar o outro assim mesmo, como ele é, sem tentar modificá-lo. É nessa extrema capacidade de compaixão que reside a força maior, a que faz unir as pessoas e transcender as diferenças.
Este tipo de pensamento me vem à mente sempre que relembro a infância – em particular, os períodos de férias passados na fazenda de minha avó em Minas Gerais. Vovó Sinhá era aquela típica velhinha dos contos de fadas: gorda, com seios fartos, cabelos brancos presos em um coque, cheirosa como ela só. Seu imenso coração tinha lugar para todos os nove netos, que corriam e falavam ao mesmo tempo, exigiam sua atenção e faziam piruetas à sua volta. Não sei como ela não perdia o equilíbrio. Preparava doces memoráveis e sabia exatamente qual o predileto de cada um de nós. À noite, após o jantar, exaustos de tanto brincar, nós lhe pedíamos:
- Vovó, conta uma história...
Ela sabia, ou inventava (quem sabe?) muitas, todas do “tempo em que os bichos falavam”. Depois cantava canções de ninar e, aos poucos - os menores primeiro - íamos dormindo, um a um, e sonhávamos com fadas, castelos, coelhinhos saltitantes, leões ferozes e caçadores valentes – uma festa!
A doçura de vovó contrastava com o azedume crônico de sua irmã mais velha. Incrível como duas pessoas, filhas da mesma mãe e do mesmo pai (presume-se), tinham temperamentos tão diferentes. Tia Virgínia se juntava ao nosso grupo, invariavelmente, todo mês de julho. Levava os três netos, o que só nos enchia de mais alegria; mas, ela própria, reclamava de tudo - o tempo todo.
Se gritávamos muito, a cabeça lhe doía; se ficávamos quietos, alguma coisa terrível estávamos aprontando; se fazia sol, o calor lhe incomodava; se chovia, a umidade penetrava em seus ossos; não suportava os doces de vovó, que a faziam engordar; as histórias de toda noite eram “bobas e sem nexo”. A fantasia, para ela, não tinha sentido algum. O que importava era a “cruel” realidade da vida.
- Perda de tempo essa coisa de bichinhos que falam – ensinava. Temos de mostrar a estas crianças a maldade e a falsidade de que os homens são capazes.
Vovó tentava apaziguar a irmã com palavras doces.
- Deixe os meninos sonharem, meu bem, eles têm muito tempo pela frente para amadurecer. Aproveitemos ao máximo a pureza de sua inocência.
Era tocante ver o carinho com que vovó Sinhá tratava tia Virgínia. Suas rabugices não a incomodavam nem um pouco. Acho, inclusive, que ela sentia pena da irmã por perder o melhor da vida com reclamações que não a levavam a lugar nenhum, nem lhe faziam melhorar o humor. Será que ela tinha sido sempre assim – desde pequena? Ou alguma coisa aconteceu em sua juventude que a tornou amarga para sempre? Não fiz essas perguntas no momento certo. Agora não há como voltar atrás: elas estão sem respostas.
O fato é que, apesar de aparentar o contrário, tia Virgínia tinha adoração por seus netos. Quanto aos sobrinhos-netos, bem, aí já era querer demais: ela nos aturava da melhor forma que conseguia, o que não significava grande coisa para nós. Aliás, justamente por isso, fazíamos tudo para atormentá-la. Era diversão garantida!
No ano em que completei dez anos, estávamos todos reunidos na fazenda quando, três dias antes do meu aniversário, vovô Roberto nos chamou e fez uma proposta.
- Criançada, que tal fazermos um acampamento do outro lado da colina, perto do riacho? A gente sai amanhã de manhã, bem cedinho, e volta daqui a três dias. Levamos os cavalos, comida e água, e deixamos Sinhá e Virgínia fazendo os preparativos para a festa de Clarinha.
Nem é preciso dizer que a excitação não nos deixou dormir naquela noite. Acampar com vovô era o que mais gostávamos de fazer na época. Ficávamos totalmente livres, tomávamos banho no riacho, caçávamos passarinhos, corríamos atrás dos esquilos, enfim, não tínhamos nenhuma obrigação. Era só brincar.
Vovó e tia Virgínia aproveitavam também para descansar da confusão e do barulho que doze crianças juntas podem promover. Colocavam as fofocas em dia e relembravam a própria juventude. Há quem tenha visto até tia Virgínia enxugar furtivas lágrimas de saudade dos netos, nessas ocasiões.
Nesse ano específico, tudo ficou muito marcado na minha lembrança. Os ritos de passagem, a cada década, eram tradição de família. E eu, afinal, já teria direito a ganhar meu primeiro relógio de pulso, a tomar uma taça de vinho (com água e açúcar, é bem verdade) durante a festa, e a ter um cavalo só para mim, pelo qual seria responsável dali para a frente.
Os empregados da fazenda se esmeravam nos preparativos e ajudavam as duas velhas senhoras com a decoração e as iguarias. Meus pais e tios eram esperados a qualquer hora. Enquanto isso, no acampamento, esbanjávamos nossa energia de tal forma que, à noite, praticamente caíamos desmaiados de tanto cansaço – aquele cansaço bom, de quem é livre, despreocupado, de bem com a vida.
Enfim, chegou o dia de voltar. Ninguém ficou triste dessa vez. Sabíamos que uma grande festa nos aguardava e que toda a família estaria na fazenda para nos receber. Galopamos com vontade, o vento frio de julho a bater em nossos rostos, apostando para ver quem chegava primeiro.
O barulho que fazíamos, pode-se supor, sinalizou nossa chegada bem antes de o fato se consumar. Vieram todos para a varanda. De longe, víamos os braços levantados a acenar e imaginávamos os gritinhos de alegria do pessoal. Até tia Virgínia, que tanto reclamava do barulho, chegou a ensaiar um sorriso ao ver os netos queridos.
Quando, finalmente, apeamos das montarias, depois dos abraços e beijos, só o que ouvíamos eram expressões exclamativas:
- Parabéns, Clarinha!
- Meu filho, como você está forte!
- Verinha, você parece uma índia de tão morena!
- Cláudio, como estás imundo, meu lindo!
- Venham cá, meus amores, que saudade!
De repente, uma coisa me chamou a atenção no meio do alvoroço. Era tia Virgínia, que já tinha apanhado as mochilas de seus netos, e nos brindava com sua voz ranzinza:
- Ah, meu Deus! Quanta roupa suja!

Fevereiro de 2008

quinta-feira, 13 de março de 2008

Já estou com um soninho... Mas resolvi dar uma passada por aqui antes de deitar. Tive um dia atípico. Dei um tempo para mim mesma, fiz um exercício de respiração fantástico que aprendi em um curso ministrado pela ONG "Arte de Viver" e relaxei. Conclusão: da hora do café até a hora do almoço, estive em alfa. Foi muito bom. Minhas idéias clarearam e pude colocar em um pedaço de papel todos os itens que pretendo discutir com minha terapeuta na próxima sessão. Será uma sessão definitiva. Vou colocar os pingos em vários iiiiis e vou pular fora. Foram dois anos bem interessantes, nos quais descobri muita coisa sobre mim mesma. Ela me ajudou muito, mas nosso tempo acabou. Resolvi agora fazer um trabalho de arteterapia para apurar algumas pendências do inconsciente. Falta pouco, mas eu chego lá.
Hoje trouxe duas coleguinhas da Bia para brincar aqui em casa depois da escola. As mães estavam um pouco aflitas, achando que eu não ia dar conta. Não sabem de nada! Não é a primeira vez que faço isso. Amo essa garotada inteligente, cheia de energia e me alimento dessa força. Brincamos para valer. Foi ótimo!

Para não perder o hábito, aqui vai mais um dos meus textos:


LUGARES QUE NÃO CONHEÇO, PESSOAS QUE NUNCA VI

Sylvia Regina Marin

Sim, meu amigo, amo a vida acima de tudo. Sei que duvidas da minha alardeada capacidade de me transmutar em diferentes seres. Sofres ao pensar que sou louca, que as experiências que te narro são fruto de uma alucinada imaginação. Não te conformas com esta inquietude que admiras mas, ao mesmo tempo, temes. Teu cuidado me emociona. Faz-me lembrar da menininha que um dia fui e que ainda trago dentro do peito. Sinto teu constante carinho, como se houvesse sempre uma mão a acariciar minha cabeça, a me incentivar:
- Vá, querida, corra, descubra novos mundos, não tenha medo, você é maior do que todas as coisas!
A criança ainda vive no meu coração. Os sofrimentos e as dores que me levaram à maturidade não tiveram força suficiente para sufocar a alegria de viver, a fome do contínuo aprendizado, a sede de um dia achar a fonte da verdadeira felicidade.
Tu bem sabes quantos lugares conheci, quantos homens amei, quantos amigos tenho feito durante essa busca incessante pela paz da minha alma. Claro, nenhum como tu, meu querido, sempre atento, por perto, pronto para me amparar nos desvios do caminho.
Não te atemorizes agora. Acompanhaste todas as aventuras nas quais me joguei de cabeça. És capaz de te lembrar o número de vezes em que rimos e choramos juntos? Ou mesmo separados, às vezes a léguas de distância, mas de alguma forma conectados pela amizade profunda de que tanto nos orgulhamos. Vivi intensamente aqueles momentos e tu sabes disso. Todos os prazeres materiais foram por mim experimentados. Em muitas ocasiões, veladamente, tu davas sinais de desaprovação. Mas eu vivia sempre ocupada demais para discutir o assunto contigo. Na verdade, ignorava teus sinais.
Porque te inquietas tanto nesse momento? Não vês que a garota inconseqüente deu lugar a uma mulher equilibrada e sensata? O que te assusta? Acho que tu querias que eu continuasse única, uma cidadã do mundo. É isso? Não, meu querido, isto eu já fui, lamento por ti.
Descobri, de alguma forma, que tudo que eu procurava não estava lá fora, na imensidão do planeta, mas dentro de mim mesma. Percebi que sou múltipla. E que posso me transformar em outro ser de acordo com a situação à minha volta. Torno-me invisível quando quero. Tu duvidas, mas é sério. Consigo viajar para outros lugares sem sair da minha poltrona favorita, na varanda da casa que finalmente escolhi como pouso para o outono de minha vida.
Estou feliz, e isso devia te bastar. Minha alma se aquietou. Talvez esta singularidade me torne menos interessante do que outrora, mas não me importo. Daqui mesmo, tendo o Cristo Redentor como pano de fundo para a imaginação, vou a lugares que não conheço, encontro pessoas que nunca vi, e me delicio em constatar que, sim, a felicidade é possível.


Dezembro de 2007

domingo, 9 de março de 2008

FALSA LOURA

Acabei de ver o blog da Ana Beatriz, e fiquei toda prosa. As últimas matérias que ela escreveu tiveram o comentário de mais de 50 pessoas. Também o assunto era "quente": essa confusão que as autoridades espanholas estão arrumando com os viajantes brasileiros. A Espanha já foi o país número 1 em turismo na Europa. Agora, quem puder evitar, vai fazer um desvio de rota. Já tem gente armando um movimento para que os brasileiros tirem suas contas do banco Santander (quem tiver, é claro), deixe de usar a VIVO e a companhia aérea Ibéria. Nossa vingança será maligna.

Abaixo mais um texto de minha humilde autoria.

Janete estava desesperada. Andava de um lado para o outro na pequena sala de seu apartamento, com os olhos inchados de tanto chorar. Só não arrancava os cabelos porque, definitivamente, dava-lhe muito trabalho – e custava caro – manter seus cachos louros impecáveis, hidratados e brilhantes. Já tinha tirado o esmalte das unhas com os dentes, quebrado alguns bibelôs de cristal que estavam no console da entrada, rasgado as revistas preferidas de Daniel. Mas seu cabelo... não. Este sairia intacto do turbilhão de emoções que ela experimentava naquele momento. Afinal, ainda lhe restava um resquício de lucidez.
Segurava com ódio o relatório que detetive Rossi lhe havia entregado há uma hora atrás. Apesar das desconfianças, uma parte do seu coração torcia para que tudo não passasse de um sonho ruim, loucura de uma mente desvairada. Não era. As viagens repentinas de Daniel, seus escrúpulos em comentar sobre o trabalho que fazia, os sobressaltos quando o telefone celular tocava, suas súbitas dores de cabeça toda vez que Janete queria reunir os amigos – eram sinais inequívocos de que havia alguma coisa errada.
Dez anos de casados... Janete se perguntava como ela tinha agüentado tanto tempo... Que amor é esse que deixa turva a visão de uma pessoa e embota completamente seu raciocínio? Bem que a mãe a alertou, mas alerta de mãe só serve mesmo para botar lenha na fogueira. É fato comprovado.
Ela olhava a toda hora para o relógio na parede. Os minutos voavam e Janete não era capaz de decidir o que fazer. Juntava a roupa de Daniel, colocava em uma mala e entregava a ele quando chegasse? Ou pegava uma tesoura e cortava tudo em mil pedacinhos? Que tal uma armadilha – uma bomba caseira que explodisse assim que ele abrisse a porta? Veneno no seu cálice de San Raphael... Uhn... Não tinha pensado nisso antes... Não. Era perigoso demais. Ela podia acabar sendo presa. Era só o que faltava...
Na verdade, ela não queria que ele morresse; pelo menos, não desta forma, sem sofrimento, sem tortura. É... uma boa e bem planejada tortura seria a vingança ideal. Janete respirou fundo. Era necessário que estivesse de cabeça fria, calma. Lembrou-se das respirações compassadas que aprendera nas aulas de yoga e, lentamente, seu coração voltou a bater no ritmo normal. O cérebro, mais oxigenado, retomou a função que lhe cabia por direito, isto é, raciocinar. Arrumou a casa, jogou as revistas rasgadas na lixeira, catou os cacos de cristal, passou um removedor de esmalte nas unhas, tomou um longo e relaxante banho morno, perfumou-se e sentou-se no sofá, defronte à porta, preparada para jogar na cara de Daniel aquilo que ele julgava ser o maior martírio na vida de um homem. Esperou.
Já passava das oito horas da noite quando Janete ouviu o barulho da chave. Empertigou-se. Daniel se espantou ao encontrar a mulher assim tão... como direi?... pronta para dar um bote, talvez.
- Olá, querida! Está tudo bem? perguntou cauteloso.
E ela atacou:
- Meu amor, precisamos discutir nossa relação. Agora.
Ele começou a suar frio, a sentir coceiras pelo corpo, o coração a palpitar...
- Benzinho, pode ser depois do jantar? Vou tomar um banho...
- AGORA!
- Mas, queridinha...
- AGORA, meu caro! Sente aí! Não temos jantar hoje. Estou muito traumatizada porque sinto que você não gosta da comida que faço com tanto carinho.
- Gosto sim, amorzinho. É que, às vezes, fica um pouquinho salgada, mas não tem importância.
- Tem sim, Dandan, eu me esforço tanto e você nunca elogia, ainda faz comentários sobre o delicioso bolo de batata de sua mãe. E não é só isso. Quero conhecer seus colegas de trabalho e você não me apresenta a ninguém. Tem vergonha de mim? Eu sou feia? Gorda demais? Sou brega? Falo besteira?
- Mas que idéia, não é nada disso. Puxa, Janjan, estou passando mal. Vamos continuar esse papo amanhã?
- NÃO! AGORA! Quero saber porque você não quer mais transar comigo todos os dias, como a gente fazia quando se casou. Deixei de ser apetitosa para o seu gosto? A rotina entedia o rapaz? Ou você tem outra mulher, mais nova, mais magra, mais à toa? Responde, seu falso!
- Falso? Eu? Por favor, não agüento mais... Isso é uma tortura!
- Falso, sim, verme. Descobri tudo. Seu nome é falso, seu trabalho é falso, você tem outra família e até filhos. Você tem me usado esses anos todos como disfarce para suas transações ilícitas. Seu amor por mim era falso, como é que pode? Até o bolo de batata da sua mãe era falso... Isso eu não perdôo! Está vendo este relatório? Uma cópia já foi entregue à polícia hoje de manhã. Você está perdido. Já era.
De pálido, Daniel foi ficando vermelho. Por essa ele não esperava. Tinha armado tudo tão direitinho... Que raiva! Sua vontade, naquele momento, era atingir Janete em seu ponto fraco – dizer para todo mundo que ela, sim, era falsa - uma loura falsa.
Não teve coragem.

quinta-feira, 6 de março de 2008

RETRATO EM BRANCO E PRETO

Faço parte de um grupo literário, egresso de uma oficina de novos autores realizada no Castelinho do Flamengo. É um grupo super-animado, aberto, eclético, e, caramba, UM TORCE PELO OUTRO. A conquista de cada um é uma alegria que envolve todos. Amo de paixão essa turma.
Este ano decidimos fazer uma reunião quinzenal na casa da Myriam, em Copacabana. A história de vida da Myriam, em si, daria um belíssimo romance. Aliás, ela própria tem muita coisa escrita, só que em italiano. Ela é napolitana. Fala muito bem o português, com um sotaquezinho charmosérrimo. Na primeira reunião do ano, ela nos mostrou uma fotografia belíssima de seus pais, quando ainda eram jovens. A foto passou de mão em mão e a Anna (outra participante), fascinada, propôs que cada um escrevesse um texto sobre a foto.
Eis aí o meu texto:

RETRATO EM BRANCO E PRETO

Sylvia Regina Marin

Volto à casa onde vivi minha infância. Queria estar bem longe neste momento, mas não tive alternativa. O vôo que me trouxe da Venezuela, com escala em Miami, Lisboa e Madri, foi tremendamente exaustivo. Não preguei olho durante todo o trajeto e sinto-me agora como um zumbi, atordoada pelo fuso horário, pelas lembranças, pelo que me espera.
Luigi, nosso antigo mordomo, fez a gentileza de me pegar no aeroporto em Roma. Como está encurvado, santo Deus! Parece que já tem uns cem anos... No entanto, ao me encontrar, seus olhos se iluminaram e tive a impressão de vê-lo dar três pulinhos - isso mesmo - exatamente como fazia quando queria nos prevenir de que algo sério estava para acontecer. É, ele sempre sabia de tudo.
Veio dirigindo calado até Nápoles. Respeitou minha fragilidade e eu sou tão grata a ele por isso... Subo as escadas da frente bem devagar. (Meus irmãos não podiam ter me deixado sozinha numa hora dessas... Eles me pagam.) Cada degrau atingido é como um obstáculo, vencido com extrema dificuldade. Para meu alívio, percebo que a escadaria não é tão grande quanto a imagem registrada em minha mente.
Luigi me ultrapassa e abre as pesadas portas de madeira. A casa foi vendida, e tenho menos de uma semana para retirar todos os móveis e objetos que um dia pertenceram a meus pais. Abro as janelas e agradeço ao Criador por me enviar esses raios de sol, que me aquecem, me energizam. Respiro fundo. Em cada cômodo que entro, um fiapo de memória se levanta, e os fiapos vão se juntando, me enroscam, se expandem através do meu corpo e, quando me dou conta, explodo em lágrimas convulsivas – lágrimas de dor, de saudade, de impotência. Estou sozinha; ao meu redor - objetos que já tiveram tanta importância um dia e que agora, assim, de repente, não têm mais significado algum.
- Que sentido tem a vida? me pergunto.
De repente, ouço um grande alarido que vem da rua. Chego à janela do quarto principal e vejo crianças a conversar, rir e correr. É o horário de saída da escola em frente. Lembro de minha pequena Sofia, sua desenfreada alegria de viver, e me dá um nó na garganta - vontade de voltar correndo para casa e abraçá-la muito. Não posso esquecer de dizer-lhe o quanto a amo. Quando nossos entes queridos se vão é que percebemos como foram poucas as vezes que lhes dissemos: “Eu te amo!”
Abro, sem pensar, as gavetas da cômoda próxima à janela. Estão vazias. Mas... espere aí... no fundo da última gaveta... Ora, quem diria... Um retrato antigo de mamãe e papai. Eu me lembro desta foto. Como ela pode ter ficado esquecida aqui durante tanto tempo?
Desço as escadas e grito por Luigi.
- Venha cá, meu amigo, olhe só este retrato... Como eram belos e apaixonados, não? Mamãe me contou, uma vez, que eles tiraram essa foto na praia no dia que fizeram um ano de casados. Já era fim de tarde e o vento castigava a pele queimada de papai – por isso ele pôs o paletó por cima da roupa de banho. Veja lá ao fundo - um pedaço da ilha de Ischia! Ah! Que alegria! Sabe o que mais, Luigi? Acabo de tomar uma decisão. Peço-lhe um último favor: providencie transporte para retirar tudo desta casa. Fique com o que você quiser e distribua o resto para pessoas necessitadas. Levarei somente a fotografia. É este símbolo de juventude, alegria e amor que guardarei como recordação.
Saio leve e feliz. Aceno para as crianças que caminham pela calçada. Penso que, nos momentos de desespero, a vida realmente não tem sentido. Mas isso passa. Tudo passa. O que fica mesmo é a imagem do olhar amoroso registrada para sempre em um retrato em branco e preto.

Março de 2008

quarta-feira, 5 de março de 2008

SINAIS DE FUMAÇA

Há sinais de fumaça no horizonte. Vejo-os mas não sei o seu significado. Sinto que eles querem me dizer alguma coisa. O que será? Recordo os antigos ensinamentos passados através de diversas gerações e que me remetem a meus ancestrais índios. Para onde foi que, no meio do meu louco caminhar pela vida, deixei que isso me escapasse? Onde estão a pureza, o amor, a inocência, a fraternidade? Que falta de tempo é essa que não me permite parar para apreciar a beleza do amanhecer, ouvir o cantar dos pássaros nas árvores, me encantar com as flores que desabrocham na primavera ?
Há sinais de fumaça no horizonte. A criança de ontem, curiosa, amorosa, que devorava todos os livros que lhe caíam nas mãos pela ânsia de conhecer o mundo, onde está? Ela foi perdendo seus avós, seus pais, os familiares mais velhos, e ela própria se tornou mãe e avó. Será que cumpriu bem a meta a que se propôs seguir? Será que está trilhando o caminho natural evolutivo do ser humano iluminado ou está precisando da ajuda de seus sábios ancestrais? Onde se perdeu aquela magia? Onde encontrar novamente a centelha da comunicação, a simplicidade dos abraços perdidos?
Há sinais de fumaça no horizonte. Sim, eu sei que eles estão me chamando. Tento entrar em sintonia com os elementos da natureza. Tenho certeza de que eles hão de me orientar. É com respeito que abraço a velha árvore cujos galhos há anos enfeitam, com suas lindas flores vermelhas, a janela do meu quarto. Pego um punhado de terra e agradeço ao Ser Superior a alegria de me permitir esse contato. Sinto o vento em meus cabelos e fecho os olhos, respirando fundo e com prazer. Ah! Sensação inebriante e avassaladora! Sento-me, encostada à árvore, e deixo que meus sentidos me levem a algum lugar.
Há sinais de fumaça no horizonte. Não os vejo agora porque estou arrebatada pela experiência única de perceber meu corpo se diluindo em sua matéria e me fazendo sentir parte integrante da terra. Lá de longe percebo um movimento familiar, sinto um cheiro tão gostoso e não consigo mais ter dúvidas, nem queixas, nem dores. Flutuo como se estivesse em um tapete mágico, que me leva suavemente, acariciada pela brisa fresquinha, até o centro de uma enorme floresta. Reconheço o lugar, as pessoas que se aproximam, os animais selvagens que vêm lamber meus pés e não me causam medo.
Há sinais de fumaça no horizonte. São eles, meus antepassados, que dançam em volta de uma fogueira. É alguma festa da tribo? Não, eles estão simplesmente brindando à vida, agradecendo aos deuses a força, que os mantém saudáveis, a conexão com a natureza, que mantém seus espíritos elevados, e o amor incondicional, que os une para sempre. Eu me integro a esse grupo e me encho de alegria, dançando e cantando, abraçando meus irmãos, colocando mais lenha na fogueira para nos aquecer. Meu Deus! Como é fácil ser feliz! Quero continuar ali para sempre, mas meu devaneio termina.
Volto ao meu lugar sentada embaixo da árvore. E penso que a felicidade existe sim. Está dentro de mim, e que a mim está sendo dado o poder de transmiti-la. Vou amar mais, abraçar mais, beijar mais, rir mais e conquistar cada vez mais amigos. Essa é a minha missão. Olhem para o céu! Não há mais sinais de fumaça no horizonte ...


Dezembro de 2006
Hoje é aniversário do Marco Antônio: 63 anos, com um corpinho de 62. Ainda bate uma bolinha. Leila e Wagner, amigos nossos, mandaram por e-mail um vídeo do Ray Conniff tocando Besame Mucho em homenagem à data. Quem tem a nossa faixa etária se lembrará, por certo, da orquestra que animava os bailinhos de nossa adolescência (claro, desde que não estejam completamente esclerosados). Biazinha ficou chateada. Queria festa no playground. Teve que se contentar com um bolinho, muitas velas e parabéns para você, cantado em alto e bom som. Os corações estão em festa. É o suficiente.

terça-feira, 4 de março de 2008

A foto abaixo é um momento raro de encontro de toda a família. Foi feita em outubro de 2007. Na extrema esquerda, Marco Antônio, maridão, companheiro de uma longa jornada; logo depois, Ana Beatriz, minha filha do meio, jornalista, que vive em Barcelona há 3 anos e 5 meses (estava no Brasil nessa época para um período de 2 meses de férias); ao lado dela, Paulo Eduardo, meu filho mais velho, piloto, vive mais no ar do que em terra (abraçado por Lili, nome pelo qual chamo carinhosamente minha nora Eliane); depois vem o Lucas, meu neto mais velho (11 anos de pura rebeldia); eu, com a Beatriz no colo (minha neta de 4 anos - um tanto entendiada no momento da foto); e agachada na frente, minha filha Maria Cecília, formada em Turismo e trabalhando, no momento, como agente de viagens. São todos lindos, maravilhosos, fofos, e eu os amo demais.

Proposta de trabalho (Oficina de Escrita Criativa – Estação das Letras): Eleger um espaço qualquer, inserindo nesse espaço um mini-texto, com personagens e ação.


AULA DE HIDROGINÁSTICA

Sylvia Regina Marin


Piscina aquecida...Vão chegando senhoras da terceira idade para mais uma aula. O professor, jovem, atlético, se prepara psicologicamente para o encontro. Três vezes por semana, às dez horas em ponto, elas chegam em bando e já começam a tagarelar antes mesmo do início da aula. Ele tenta organizar a confusão que elas causam, mas ninguém o escuta. Trocam receitas de bolo, comentam a novela, falam mal da colega que faltou e, às vezes, conseguem conciliar o movimento de braços e pernas. Ele desiste de gritar. Suaviza o tom de voz. Conta uma piada. Todos caem na risada. Quando termina a aula, ele as olha com ternura. Continuam flácidas e barrigudas, mas estão tão felizes...
Hoje estou animada. Terça-feira é meu dia de força, segundo a Astrologia Védica. Isto porque nasci em uma terça-feira. Aliás, preciso provar a mim mesma que esta tese é verossímil. Na dúvida, me levanto da cama às terças predisposta a vencer qualquer obstáculo e mostrar ao mundo como sou poderosa. Bem, confesso que há outros dias, durante a semana, que acordo com a mesma disposição. Às vezes dá certo. Vou começar a postar meus textos: coisas escritas desde o início do ano passado, quando me meti a fazer um curso de escrita criativa na Estação das Letras. Adorei a brincadeira e daí para a frente não parei mais.
Beijos carinhosos a todos que me lerem.

sábado, 1 de março de 2008

"Hoje é um novo dia, de um novo tempo que começou."
É incrível eu estar sentada à frente do computador em um sábado à noite. Normalmente, estaria reunida com amigos, ou vendo um filme ou peça de teatro. Há muita coisa boa para assistir e estou ansiosa. A arte me alimenta o espírito, seja ela qual for. Mas hoje estou aqui. Vontade enorme de me conectar com o mundo. Tenho escrito alguns contos, uma espécie de exercício literário. Às vezes percebo que consigo atingir o coração das pessoas e isto me estimula. Não sei onde vou chegar, mas também não estou preocupada. Caminho. A partir de agora vou postar meus textos para apreciação geral. Peço a quem gostar que me mande um comentário. Quem não gostar, também. Amizades não serão desfeitas por conta disto.