quinta-feira, 6 de março de 2008

RETRATO EM BRANCO E PRETO

Faço parte de um grupo literário, egresso de uma oficina de novos autores realizada no Castelinho do Flamengo. É um grupo super-animado, aberto, eclético, e, caramba, UM TORCE PELO OUTRO. A conquista de cada um é uma alegria que envolve todos. Amo de paixão essa turma.
Este ano decidimos fazer uma reunião quinzenal na casa da Myriam, em Copacabana. A história de vida da Myriam, em si, daria um belíssimo romance. Aliás, ela própria tem muita coisa escrita, só que em italiano. Ela é napolitana. Fala muito bem o português, com um sotaquezinho charmosérrimo. Na primeira reunião do ano, ela nos mostrou uma fotografia belíssima de seus pais, quando ainda eram jovens. A foto passou de mão em mão e a Anna (outra participante), fascinada, propôs que cada um escrevesse um texto sobre a foto.
Eis aí o meu texto:

RETRATO EM BRANCO E PRETO

Sylvia Regina Marin

Volto à casa onde vivi minha infância. Queria estar bem longe neste momento, mas não tive alternativa. O vôo que me trouxe da Venezuela, com escala em Miami, Lisboa e Madri, foi tremendamente exaustivo. Não preguei olho durante todo o trajeto e sinto-me agora como um zumbi, atordoada pelo fuso horário, pelas lembranças, pelo que me espera.
Luigi, nosso antigo mordomo, fez a gentileza de me pegar no aeroporto em Roma. Como está encurvado, santo Deus! Parece que já tem uns cem anos... No entanto, ao me encontrar, seus olhos se iluminaram e tive a impressão de vê-lo dar três pulinhos - isso mesmo - exatamente como fazia quando queria nos prevenir de que algo sério estava para acontecer. É, ele sempre sabia de tudo.
Veio dirigindo calado até Nápoles. Respeitou minha fragilidade e eu sou tão grata a ele por isso... Subo as escadas da frente bem devagar. (Meus irmãos não podiam ter me deixado sozinha numa hora dessas... Eles me pagam.) Cada degrau atingido é como um obstáculo, vencido com extrema dificuldade. Para meu alívio, percebo que a escadaria não é tão grande quanto a imagem registrada em minha mente.
Luigi me ultrapassa e abre as pesadas portas de madeira. A casa foi vendida, e tenho menos de uma semana para retirar todos os móveis e objetos que um dia pertenceram a meus pais. Abro as janelas e agradeço ao Criador por me enviar esses raios de sol, que me aquecem, me energizam. Respiro fundo. Em cada cômodo que entro, um fiapo de memória se levanta, e os fiapos vão se juntando, me enroscam, se expandem através do meu corpo e, quando me dou conta, explodo em lágrimas convulsivas – lágrimas de dor, de saudade, de impotência. Estou sozinha; ao meu redor - objetos que já tiveram tanta importância um dia e que agora, assim, de repente, não têm mais significado algum.
- Que sentido tem a vida? me pergunto.
De repente, ouço um grande alarido que vem da rua. Chego à janela do quarto principal e vejo crianças a conversar, rir e correr. É o horário de saída da escola em frente. Lembro de minha pequena Sofia, sua desenfreada alegria de viver, e me dá um nó na garganta - vontade de voltar correndo para casa e abraçá-la muito. Não posso esquecer de dizer-lhe o quanto a amo. Quando nossos entes queridos se vão é que percebemos como foram poucas as vezes que lhes dissemos: “Eu te amo!”
Abro, sem pensar, as gavetas da cômoda próxima à janela. Estão vazias. Mas... espere aí... no fundo da última gaveta... Ora, quem diria... Um retrato antigo de mamãe e papai. Eu me lembro desta foto. Como ela pode ter ficado esquecida aqui durante tanto tempo?
Desço as escadas e grito por Luigi.
- Venha cá, meu amigo, olhe só este retrato... Como eram belos e apaixonados, não? Mamãe me contou, uma vez, que eles tiraram essa foto na praia no dia que fizeram um ano de casados. Já era fim de tarde e o vento castigava a pele queimada de papai – por isso ele pôs o paletó por cima da roupa de banho. Veja lá ao fundo - um pedaço da ilha de Ischia! Ah! Que alegria! Sabe o que mais, Luigi? Acabo de tomar uma decisão. Peço-lhe um último favor: providencie transporte para retirar tudo desta casa. Fique com o que você quiser e distribua o resto para pessoas necessitadas. Levarei somente a fotografia. É este símbolo de juventude, alegria e amor que guardarei como recordação.
Saio leve e feliz. Aceno para as crianças que caminham pela calçada. Penso que, nos momentos de desespero, a vida realmente não tem sentido. Mas isso passa. Tudo passa. O que fica mesmo é a imagem do olhar amoroso registrada para sempre em um retrato em branco e preto.

Março de 2008

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