segunda-feira, 17 de março de 2008

Minha terapeuta é formidável. Cheguei hoje lá com toda convicção e ela me mostrou, com uma habilidade e inteligência inegáveis, que minha transmutação está praticamente feita. Falta uma pontinha, mas é preciso insistir um pouco mais. Esse tal de inconsciente briga o tempo todo com meu lado fortemente racional, mas vou resolver esse caso, custe o que custar. Estou chegando lá. Este fim-de-semana fiz coisas que foram um bálsamo para o espírito. No sábado, assisti, no canal GNT, a um filme intitulado Bethânia é Perfume: lindo, magnetizante, emocionante, como só Maria Bethânia sabe ser. No domingo fui ao Unibanco Arteplex ver "Na Natureza Selvagem", filme dirigido pelo Sean Penn. Imperdível! De uma beleza plástica, uma sensibilidade... Fiquei arrepiada.

Aí vai mais um textinho:

ROUPA SUJA

Estranhos são os caminhos do amor; mas, como dizem que “toda forma de amar vale a pena”, penso que o fundamental nas relações humanas seja a tolerância – aceitar o outro assim mesmo, como ele é, sem tentar modificá-lo. É nessa extrema capacidade de compaixão que reside a força maior, a que faz unir as pessoas e transcender as diferenças.
Este tipo de pensamento me vem à mente sempre que relembro a infância – em particular, os períodos de férias passados na fazenda de minha avó em Minas Gerais. Vovó Sinhá era aquela típica velhinha dos contos de fadas: gorda, com seios fartos, cabelos brancos presos em um coque, cheirosa como ela só. Seu imenso coração tinha lugar para todos os nove netos, que corriam e falavam ao mesmo tempo, exigiam sua atenção e faziam piruetas à sua volta. Não sei como ela não perdia o equilíbrio. Preparava doces memoráveis e sabia exatamente qual o predileto de cada um de nós. À noite, após o jantar, exaustos de tanto brincar, nós lhe pedíamos:
- Vovó, conta uma história...
Ela sabia, ou inventava (quem sabe?) muitas, todas do “tempo em que os bichos falavam”. Depois cantava canções de ninar e, aos poucos - os menores primeiro - íamos dormindo, um a um, e sonhávamos com fadas, castelos, coelhinhos saltitantes, leões ferozes e caçadores valentes – uma festa!
A doçura de vovó contrastava com o azedume crônico de sua irmã mais velha. Incrível como duas pessoas, filhas da mesma mãe e do mesmo pai (presume-se), tinham temperamentos tão diferentes. Tia Virgínia se juntava ao nosso grupo, invariavelmente, todo mês de julho. Levava os três netos, o que só nos enchia de mais alegria; mas, ela própria, reclamava de tudo - o tempo todo.
Se gritávamos muito, a cabeça lhe doía; se ficávamos quietos, alguma coisa terrível estávamos aprontando; se fazia sol, o calor lhe incomodava; se chovia, a umidade penetrava em seus ossos; não suportava os doces de vovó, que a faziam engordar; as histórias de toda noite eram “bobas e sem nexo”. A fantasia, para ela, não tinha sentido algum. O que importava era a “cruel” realidade da vida.
- Perda de tempo essa coisa de bichinhos que falam – ensinava. Temos de mostrar a estas crianças a maldade e a falsidade de que os homens são capazes.
Vovó tentava apaziguar a irmã com palavras doces.
- Deixe os meninos sonharem, meu bem, eles têm muito tempo pela frente para amadurecer. Aproveitemos ao máximo a pureza de sua inocência.
Era tocante ver o carinho com que vovó Sinhá tratava tia Virgínia. Suas rabugices não a incomodavam nem um pouco. Acho, inclusive, que ela sentia pena da irmã por perder o melhor da vida com reclamações que não a levavam a lugar nenhum, nem lhe faziam melhorar o humor. Será que ela tinha sido sempre assim – desde pequena? Ou alguma coisa aconteceu em sua juventude que a tornou amarga para sempre? Não fiz essas perguntas no momento certo. Agora não há como voltar atrás: elas estão sem respostas.
O fato é que, apesar de aparentar o contrário, tia Virgínia tinha adoração por seus netos. Quanto aos sobrinhos-netos, bem, aí já era querer demais: ela nos aturava da melhor forma que conseguia, o que não significava grande coisa para nós. Aliás, justamente por isso, fazíamos tudo para atormentá-la. Era diversão garantida!
No ano em que completei dez anos, estávamos todos reunidos na fazenda quando, três dias antes do meu aniversário, vovô Roberto nos chamou e fez uma proposta.
- Criançada, que tal fazermos um acampamento do outro lado da colina, perto do riacho? A gente sai amanhã de manhã, bem cedinho, e volta daqui a três dias. Levamos os cavalos, comida e água, e deixamos Sinhá e Virgínia fazendo os preparativos para a festa de Clarinha.
Nem é preciso dizer que a excitação não nos deixou dormir naquela noite. Acampar com vovô era o que mais gostávamos de fazer na época. Ficávamos totalmente livres, tomávamos banho no riacho, caçávamos passarinhos, corríamos atrás dos esquilos, enfim, não tínhamos nenhuma obrigação. Era só brincar.
Vovó e tia Virgínia aproveitavam também para descansar da confusão e do barulho que doze crianças juntas podem promover. Colocavam as fofocas em dia e relembravam a própria juventude. Há quem tenha visto até tia Virgínia enxugar furtivas lágrimas de saudade dos netos, nessas ocasiões.
Nesse ano específico, tudo ficou muito marcado na minha lembrança. Os ritos de passagem, a cada década, eram tradição de família. E eu, afinal, já teria direito a ganhar meu primeiro relógio de pulso, a tomar uma taça de vinho (com água e açúcar, é bem verdade) durante a festa, e a ter um cavalo só para mim, pelo qual seria responsável dali para a frente.
Os empregados da fazenda se esmeravam nos preparativos e ajudavam as duas velhas senhoras com a decoração e as iguarias. Meus pais e tios eram esperados a qualquer hora. Enquanto isso, no acampamento, esbanjávamos nossa energia de tal forma que, à noite, praticamente caíamos desmaiados de tanto cansaço – aquele cansaço bom, de quem é livre, despreocupado, de bem com a vida.
Enfim, chegou o dia de voltar. Ninguém ficou triste dessa vez. Sabíamos que uma grande festa nos aguardava e que toda a família estaria na fazenda para nos receber. Galopamos com vontade, o vento frio de julho a bater em nossos rostos, apostando para ver quem chegava primeiro.
O barulho que fazíamos, pode-se supor, sinalizou nossa chegada bem antes de o fato se consumar. Vieram todos para a varanda. De longe, víamos os braços levantados a acenar e imaginávamos os gritinhos de alegria do pessoal. Até tia Virgínia, que tanto reclamava do barulho, chegou a ensaiar um sorriso ao ver os netos queridos.
Quando, finalmente, apeamos das montarias, depois dos abraços e beijos, só o que ouvíamos eram expressões exclamativas:
- Parabéns, Clarinha!
- Meu filho, como você está forte!
- Verinha, você parece uma índia de tão morena!
- Cláudio, como estás imundo, meu lindo!
- Venham cá, meus amores, que saudade!
De repente, uma coisa me chamou a atenção no meio do alvoroço. Era tia Virgínia, que já tinha apanhado as mochilas de seus netos, e nos brindava com sua voz ranzinza:
- Ah, meu Deus! Quanta roupa suja!

Fevereiro de 2008

6 comentários:

Beth/Lilás disse...

Tssc, tssc!
Tem gente assim mesmo como vc descreveu no conto, ranzinza, meio amarga por qualquer coisa!
Mas o interessante é como elas gostam de estar próximas àquelas que têm luz, por isso tenho até compaixão por elas.
Sei bem o que é isso!


Mas o final de semana então foi muito bom, heim!
Dizem que o Sean Penn tá "bombando" na direção deste filme, mas Hollywood hoje em dia não é mais a mesma e dá seu maior prêmio aqueles que a gente nem espera, né mesmo!?

Anônimo disse...

Olá, Sylvia, tudo bom? Sou amiga da Catarina. Uau, que texto fantástico! Consegui visualizar cada cena, o rosto da sua avó, as risadas das crianças no acampamento. As vovós são, realmente, pessoas maravilhosas, né? E sonhar, ah, sonhar é tudo! Não consigo pensar numa vida sem sonhos, sem aventuras imaginárias. Há pessoas que não pensam assim, o que eu acho bem triste, pois, se temos liberdade de voar, nada mais justo do que dar corda para toda essa emoção. Um beijo e parabéns pelo blog! :)

Sylvia Regina Marin disse...

Olá, minhas visitantes ilustres. Tenho uma informação a dar. O conto ROUPA SUJA é pura ficção. Minha avó era fofíssima, com certeza, mas tudo o que foi descrito saiu da minha doida cabecinha. Engraçado é que várias pessoas acharam que eu estava narrando fatos reais da minha vida. Sinal de que o relato foi bem feito (hum! tô metida...)
Sylvia

Beth disse...

Ô Sylvinha!
Pois eu sabia que era uma ficção pura, só achei que o paralelo com as pessoas da vida real é isso mesmo.
Tô sabendo que esta sua cabecinha é cheia de idéias mirabolantes! rsss
Beijocas.

Unknown disse...

Oi Sylvia.Recomendo-lhe tb Pedrinha
de Aruanda da Betha.Tenho apreciado
seus contos.São saborosos,ricos em
detalhes e suscitam a imaginação.Es
te reportou-me à minha infância,qdo
acampei com minha irmã na mata,man
gueiras, abacateiro, pé de maracujá
Cozinhávamos ovos e batatas e qdo o
fogo apagava,alguém nos socorria.
Não Tupã,mas nossa tia que de sua cozinha observava nossa aventura
no quintal de sua casa na Ilha,
na Base Aérea do Galeão.
E o melhor,não foi conto de fadas,
foi de verdade!

Sylvia Regina Marin disse...

Leila
Finalmente você conseguiu a tão ansiada conexão com este humilde blog. É uma honra ter sua presença aqui registrada. Gostei de ver um pouquinho de sua infância relembrada.
Super beijos.
Sylvia